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Crítica - 20.000 Espécies de Abelhas (2023)

Ao retratar a jornada de identificação pelos olhos da criança, Estíbaliz Urresola a dá o poder de escolha sobre seu próprio corpo, tornando o mundo dos adultos menos interessante



Os primeiros minutos de 20.000 Espécies de Abelhas são uma sutil manipulação de percepção, que funciona simplesmente pelo fato de observar as coisas como elas são, desviando de rótulos em seus diálogos. A criança, protagonista, revela uma personalidade forte de quem sabe impor seus próprios limites, mas todos ao seu redor parecem reagir normalmente a todo seu jeito de ser, é só quando ela é lançada em um ambiente distante, o pequeno vilarejo de origem de sua mãe, que os olhares, julgamentos e rótulos começam a aparecer e revelar, aos poucos, seu gênero de nascimento. Até então, dada sua aparência e comportamento, a conclusão mais óbvia de que se trata de uma menina, resulta de um conjunto de convenções sociais que temos e que o filme usa a seu favor para tecer seu comentário. Já é passado algum tempo e estamos tão acostumados com a ideia que pode parecer uma surpresa a revelação até sutil, portanto é possível sentir um incômodo que cresce junto com o da personagem de Sofía Otero sempre que um de seus familiares aponta algo sobre sua aparência ou personalidade. É como se Aitor, que virá a escolher o nome Lucía ao fim, fosse se compreendendo nesse mundo por meio de suas percepções graduais das pessoas ao seu redor, ao mesmo tempo em que o espectador também vai entendendo sua jornada. Isso porque, a diretora Estíbaliz Urresola busca nas cenas em que a menina é o centro, descer a câmera até o seu ponto de vista, nos colocando para observar esse universo por sua visão infantil, com toda inocência e doçura que os 6 anos de idade permitem. Enquanto isso, o filme ainda tenta abordar as questões da mãe, Ane (Patricia López Arnaiz) com seu casamento, com seus pais, familiares, de estar de volta a sua casa de origem e sua tentativa de emprego no mundo das artes que tinha deixado para trás. Essas muitas questões dos adultos soam pouco interessantes perto de tudo que Lucía está vivendo e de como tudo é mais gostoso de se assistir por seus olhos.


Possivelmente a única relação que envolve adultos que é realmente bem adicionada no longa é entre a tia de Ane, a apicultora, e Lucía. Essa mulher mais velha é a figura de sabedoria colocada como uma espécie de guia para a criança nesse processo de descobrimento. Lucía chega até o vilarejo ainda sem estar com tudo bem desenvolvido em sua mente, e é lá que pelas observações de outras meninas e mulheres ela começa a entender que realmente se identifica com o feminino e despreza seu lado masculino, sendo essa tia quem acolhe o sentimento, a ajuda a se sentir bem com seu corpo e com sua autoidentificação. O nome é a primeira coisa que Lucía rejeita quando chega nesse lugar, em contato com crianças desconhecidas. Enquanto a observamos no mesmo nível, ela busca outro rótulo que a possibilite ser uma nova pessoa, nesse novo espaço. A estrutura é comum do coming of age porém numa roupagem muito mais gentil por se tratar de uma personagem bem mais jovem do que o esperado do gênero. Assim, ao invés das descobertas de maturidade e um despertar sexual, é como se acompanhássemos Lucía nascer novamente, encontrando em outras mulheres aquilo que ela imagina para essa nova pessoa que quer acordar dentro de si mesma, por meio de roupas, espaços, aparência e um pertencimento de grupos. 



O ponto fraco é realmente sempre que estamos observando esse mundo adulto que se preocupa em se aprofundar nos dramas de Ane, com suas próprias questões mal resolvidas, o casamento acabando, o novo trabalho que precisa conseguir, dificuldades financeiras, de relacionamento com a família e até um luto não superado. Em alguns momentos não sabemos onde Lucía está, como quando ela tem problemas na loja de vestidos com outras mulheres da família, mas estamos focados na mãe. A diretora tira suas lentes do olhar infantil para retratar como essa mulher tem sua própria vida, seus próprios problemas, que muitas vezes a impedem de enxergar o que acontece de mais complexo com a filha. Para o espectador que acompanha quase tudo na perspectiva de Lucía, e para a tia que realmente a escuta e observa, é muito clara sua jornada e qual conclusão ela terá, mas para Ane demora muito mais tempo. Porém, é um tanto desinteressante esse arco e a alternância de ponto de vista acaba mais enfraquecendo do que reforçando algo. 


Nunca há uma intenção do longa em focar em preconceitos que essa criança pode viver, sempre buscando focar em sua própria compreensão de quem é nesse mundo para que ao se identificar, consiga impor seus limites para todos ao seu redor. Nem mesmo quando o longa cria relações com a religião há algum pesar para o lado mais conservador que isso pode trazer, e sim uma ressignificação que Lucía consegue criar sobre a fé. Ela pode até pedir por um milagre, mas é a forma como Urresola a filma e a retrata que dá todo poder para essa pequena criança fazer escolhas sobre seu próprio corpo, seu nome e seu gênero, restando aos adultos uma única cena em que Lucía não está mas é bastante interessante, um momento quase catártico em que a única saída para Ane e os outros está em aceitar o nome que a menina escolheu para si ou a perder para sempre. 


Filme assistido na programação do 31º Festival MixBrasil


 

Nota da crítica:

3,5/5





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