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Foto do escritorRaissa Ferreira

48ª Mostra | Abril

Em horror distanciado e frio, Dea Kulumbegashvili cria imagens de desconforto para focar em corpos femininos e a falta de direitos reprodutivos

Abril Dea Kulumbegashvili

O cinema de Dea Kulumbegashvili não é dos mais populares entre a maioria, mas vem me agradando. Assim como em Beginning, seu longa anterior, a cineasta georgiana trabalha com o distanciamento e a frieza, longos planos em que as imagens abrem novas visualizações da mesma perspectiva, o ritmo lento e uma forma que não pretende ser agradável, mas trazer desconforto. Em Abril (April) sua temática feminina é bem mais evidente, concentrando-se nos direitos reprodutivos em uma área rural. A obstetra Nina (Ia Sukhitashvili) possui sua própria representação emocional, projetada em uma figura claramente feminina, de pele seca e enrugada, mascarada e quase sem rosto, algo próximo do imaginário de uma bruxa da floresta, não apenas pelo visual da imagem, mas por seu trabalho de ajudar outras mulheres com poucos recursos, vítimas de abusos ou da opressão patriarcal que controla seus corpos. A atuação paralela da médica certamente seria enquadrada como bruxaria e de certa forma, é. O filme a coloca em julgamento, primeiro pela morte de um bebê em parto natural, algo trágico mas também não tão longe do comum em rotinas de hospitais, mas essa questão é também uma forma de a enquadrar pelos abortos que pratica fora do expediente oficial. As mesas com homens que acusam e definem veredictos colocam Nina isolada mas muito firme em seu posicionamento. Abril rejeita qualquer aproximação emotiva, pouco busca nos rostos das personagens alguma resposta e prefere a frieza de um distanciamento desconfortável, o mesmo é aplicado nas atuações, duras, mas ainda assim, de alguma forma, carentes de toque humano. Seja na médica que busca em encontros furtivos com desconhecidos algum prazer sexual ou no colega que tenta tirar algum afeto da relação de ambos. Kulumbegashvili cria imagens de horror para ilustrar uma temática muito focada em corpos, principalmente femininos, apresentados em suas formas mais cruas e vulneráveis enquanto uma voz trêmula se concentra no canto do ouvido. 


O que pode ser descrito como um estranhamento aos planos alongados e a toda essa encenação rígida e fria, é também um motor que faz de Abril um filme de terror mais do que um drama focado em personagens. O corpo feminino é retratado em diversas formas, de sua força, por exemplo, na cena de parto que abre o longa simplesmente filmando de cima e sem cortes, um bebê nascendo pela vagina. Em sua vulnerabilidade, por tantas vezes que vemos Nina nua em cenários escuros e tristes, ou quando o aborto é filmado não de forma frontal, mas concentrando o ponto de vista nas mãos que se seguram apertadas enquanto a voz da médica avisa sempre que haverá dor. E, muitas vezes, colocado em situações de perigo, em que homens são ameaças iminentes. Nesse lugar em que o direito ao aborto não é garantido e em que meninas e mulheres adultas não tem poder de controlar quando desejam ou se desejam engravidar, casar ou ter prazer, Nina opera enxugando gelo, dando contraceptivos em segredo, interrompendo gestações indesejadas e vindas de estupros, sem saber como melhor resolver as situações em que se envolve. A entidade que representa seu estado de espírito é tanto a solidão que ela enfrenta, quanto alguma monstruosidade que possa sentir nesse papel, e principalmente, a que projetam nela, a bruxa que enxergam em sua figura.


Em dado momento um homem diz que logo as leis devem mudar ou que as mulheres podem ir até outra cidade para realizarem abortos se assim quiserem. Impossível não pensar na situação real de tantos lugares, como o próprio Brasil de onde escrevo agora, em que esperamos sem muita esperança esse dia de mudança chegar. Kulumbegashvili se concentra nessas moradoras de um lugar com ainda menos possibilidades, seja pela legislação ou pelas opressões patriarcais que estão incrustadas em seus costumes, sejam sociais ou religiosos. Mesmo que opere na distância, Abril foca suas cenas em mulheres sem buscar envolvimento emocional, mas com uma preocupação de retratar, dentro dessa atmosfera de horror, como seus corpos pouco lhes são íntimos, e como muito lhes é negado, o prazer - como quando Nina faz sexo oral em um homem e quando pede o mesmo, é agredida - e a escolha - essa sublinhada inúmeras vezes. 


Assim, sendo a protagonista a única médica mulher que vemos, há em seu papel muita coragem, mas também o ônus da solidão e da escuridão de tudo que carrega, pela obrigação em que sente de auxiliar as figuras femininas ao seu redor. Nina enfrenta responsabilidades enormes e as assume, tornando seus deslocamentos nas estradas e no vilarejo quase andanças de um fantasma, em que a câmera parece apresentar não seu ponto de vista, mas de sua representação sem rosto. As observações longas de imagens em planos incomuns distorcem percepções, como quando um corpo nu masculino se assemelha a uma mulher grávida e um pênis após tantos minutos em tela parecer perder totalmente sua forma. Entre todos esses elementos e os sons constantes e muito marcados de cachorros, relógios e a respiração desconcertante, Dea Kulumbegashvili reforça em toda sua atmosfera um terror que não é corporal, mas atravessa os corpos.


 

Nota da crítica:

4/5


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