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Foto do escritorRaissa Ferreira

48ª Mostra | Ainda Estou Aqui

Tomado por uma ausência dilacerante e tudo que não é dito nem lidado propriamente, filme de Walter Salles concentra sua força na fortaleza que é sua protagonista

Ainda Estou Aqui Crítica

A família feliz de comercial de margarina, da casa solar, colorida, sempre cheia de pessoas de forma que é difícil dizer quantos são filhos do casal principal e quantos são amigos e agregados, a história deste longa constroi de início, principalmente, um cotidiano alegre e bem povoado, para drasticamente sentir sua mudança para algo sombrio. Ainda Estou Aqui é um filme sobre uma grande ausência, mas, primordialmente, do que não é dito e, portanto, não é lidado em sua completude. Eunice Paiva (Fernanda Torres) vai de esposa dedicada ao lar e cinco filhos, à protagonista em um piscar de olhos. Quando Rubens (Selton Mello) é tirado de casa pela ditadura militar, não é apenas o Brasil do lado de fora que está se modificando, mas é o microcosmo da família Paiva que se desestrutura completamente para sempre. Walter Salles se dedica, então, a retratar a felicidade costumeira a esse núcleo familiar, as festas e reuniões em casa, a cumplicidade do casal e a rotina dos filhos que entram e saem da casa para a praia. O espaço do lar é muito trabalhado dentro de suas fronteiras, primeiro para ilustrar um local de portas abertas, em que as cores são vivas e a luz do sol é sempre presente, para se transformar em algo sombrio, pouco iluminado e vivo a partir do momento em que Rubens é retirado para sempre desse contexto, e repleto de espaços vazios em seguida. Eunice, no entanto, pode até entrar mais em foco, mas não está distante do papel que lhe foi atribuído desde o princípio, a mulher, mãe que administra o lar, dentro de sua classe social, não deve apenas lidar com a situação do desaparecimento do marido de forma burocrática, mas também proteger sua família de tudo que a ameaça, trazendo para o centro da narrativa o silêncio de tudo aquilo que não é dito nem discutido propriamente, um nó na garganta constante que evoca a emoção eventualmente em acontecimentos e lembranças comuns. Ainda Estou Aqui abre momentos em que é preciso transbordar, pois já foi contido demais, já que é um longa sobre a força que reside em ser uma barragem contendo represas, depositando toda essa alma em Fernanda Torres.


O contraste do que se vê entre a introdução e o momento em que os militares invadem o lar dos Paiva é brutal. Ainda Estou Aqui ressalta a vida para que se sinta com mais pesar a ausência dela. A casa grande, sempre repleta de pessoas alegres, tem suas cortinas fechadas assim que a ditadura adentra o lugar. Mais do que isso, o regime já em vigor parece não ser sentido com seriedade pela família até que se aproxime como uma entidade de seus integrantes. Veroca (Valentina Herszage) é parada em uma blitz e a gravidade da situação começa a ser sentida, mas é só quando Eunice observa no horizonte da cidade os carros repletos de militares cruzando a avenida, que essa mulher parece compreender a real seriedade do momento. Salles faz questão de retratar a ditadura com toda sua ameaça, mas percebendo as nuances em uma família rica, um tanto ingênua com seu impacto, protegendo mulheres e crianças em uma ignorância programada. É muito difícil falar deste filme sem considerar a classe de seus protagonistas, afinal, é a posição social e financeira dos Paiva que faz de Eunice uma esposa tão controlada em suas atitudes, que engole sentimentos para manter certas aparências e faz o silêncio tão relevante no lidar dessa situação. O desaparecimento de Rubens é algo não dito, entalado na garganta, e quando Eunice descobre sua morte incerta, não declarada, são outras muitas coisas não faladas que tomam conta de suas decisões. A empregada que segurou as pontas da família é descartada e a esposa vê a necessidade de tomar as rédeas, mas nunca de lidar frontalmente e abertamente sobre os acontecimentos com os filhos. 


A emoção vem, realmente, em etapas em Ainda Estou Aqui, isso porque o longa se pauta nessa mulher que é uma barragem de problemas e emoções, que segura demais tudo e forma nós na garganta de uma tristeza entalada. Daí quem assiste pode sentir um pesar que parece vir do nada, mas na verdade está guardado há tanto tempo que se aproxima como uma onda enorme pelos gatilhos da narrativa. O verdadeiro ponto dessa obra parece ser o ato da maternidade como fortaleza, a instituição materna que protege, impedindo até a si mesma de sentir, para que todos os filhos estejam protegidos do pior. É só depois do atestado de óbito de Rubens ser conquistado que Eunice possibilita a si mesma observar registros do passado como uma permissão para sofrer, algo que ela mesma negou para mostrar apenas sua força aos filhos. Porém, Salles ainda demonstra muito calculismo na feitura de seu filme, com a necessidade de inserir todo um contexto futuro a Eunice, não apenas visualmente, mas também em textos nas telas finais, ilustrando protocolarmente diversos pedaços da vida após a saída da família do Rio de Janeiro. Mostrar Fernanda Montenegro como uma idosa de mente deteriorada logo no desfecho já parece somente manipulação barata emocional e apelação a uma massa de público mundial. Certos momentos são inseridos com muita precisão porque parecem necessários ao sucesso que o filme demanda, e certamente trarão os resultados esperados, mas apenas confiar na força que é Fernanda Torres e sua habilidade de conter emoções dentro de seu papel de mulher e mãe que não somente é, mas precisa ser firme, bastaria a este filme. 


Compreensível que o mundo precise de certo didatismo para sentir as mazelas da ditadura e que uma parcela do público tenha determinadas demandas, mas, em minha humilde visão, a pura construção dessa família feliz que do dia para a noite é interrompida, impedida de viver o que lhe era determinado, por estruturas opressivas, parece violento e triste o suficiente para me arrancar uma boa dose de emoção. A montagem que na primeira parte picota tantas cenas, removendo suas conclusões, pontua bem o que dilacera em Ainda Estou Aqui. A ditadura no Brasil interrompeu famílias de seguirem suas vidas, alterando para sempre seus destinos, e isso tudo começou em algum dia em que cortinas foram fechadas e as sombras substituíram as luzes, tornando o seguir em frente apenas um mecanismo de sobrevivência, um simulacro de uma vida que foi ceifada.


Filme assistido a convite de Sony Pictures e Primeiro Plano

Ainda Estou Aqui chega aos cinemas brasileiros no dia 7 de Novembro


 

Nota da crítica:

3.5/5


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