Adam Elliot caminha em frente, deixando sua assinatura marcada, permitindo que a esperança exista em seu universo único e adoravelmente deprimente
É impossível falar de Adam Elliot sem falar de Mary e Max, sua animação amplamente conhecida de 2009 e que é particularmente especial para mim. Mas não só para aqueles profundamente tocados por seu trabalho mais famoso, para a crítica e grande público é também um desafio dizer qualquer coisa que seja sobre Memórias de um Caracol (Memoir of a Snail) sem citar o longa de 15 anos no passado. Caracóis não andam para trás, como bem pontuado por Elliot, que também assina o roteiro, portanto vejo a comparação entre suas obras um reconhecimento de assinatura e estilo, mais do que um exercício de encontrar semelhanças cimentadas. O cineasta não está estagnado reproduzindo a mesma animação, mas caminhando em frente seguindo uma mesma linha sólida, em que tanto visualmente quanto narrativamente, é possível sentir sua personalidade única. Mary e Max foi importantíssimo em minha vida, e chuto dizer que foi na de quase todo jovem esquisito que se sentia delocado no começo dos anos 2000, Elliot é esse artista que trabalha personagens peculiares e marginalizados, pobres, em famílias quebradas, sem autoestima ou perspectiva, mas não fica parado no ato de reconhecer suas particularidades como ponto de rejeição social, as eleva, tornando-os especiais e únicos justamente a partir delas. Assim, australianos de massinha de todas as idades, com depressão, ansiedade, asperger, tourette, com corpos e belezas fora do padrão, encontram em amizades improváveis um conforto para viver. Memórias de um Caracol é bem mais otimista em suas notas finais, embora caminhe em um tom desesperançoso comum ao cineasta, mas abraça alguma expectativa positiva, encontra perspectiva em seu fim, ao mesmo tempo em que retrata um lado muito mais sombrio e de horror no arco de Gilbert.
Grace começa a contar sua história enquanto sua amiga caracol Sylvia caminha lentamente para frente. O olhar para o passado encontra a mesma linearidade que o texto do filme reforça em sua ideia. A protagonista recorda cada detalhe desde de seu nascimento, a vida em família e a cumplicidade com seu gêmeo. Pela tristeza e solidão que se vê em Grace, é esperado que diversas tragédias sejam relatadas, o roteiro não ilude ninguém com alguma esperança, a mulher já logo informa quando foi a última vez que viu o irmão e traça uma jornada de coleções tristes. Entre urnas de cinzas, objetos roubados, caracóis e porquinhos-da-índia (ou seriam porcos-espinhos?) Grace se torna uma acumuladora de uma vida não vivida, retida em sua casca que passa da metáfora para uma projeção visual. A amizade em cartas, os tons bege e o misto deprimente e adorável são assinaturas fortes de Elliot, assim como seus personagens cheios de vícios, em álcool, sexo ou doces. Em Memórias de um Caracol, a amizade improvável que fortalece Grace não é com Gilbert e sim com Pinky, novamente trazendo um vínculo entre pessoas de idades tão distintas, mas, dessa vez, trazendo a idosa como um oposto do que é a protagonista. Pinky é quem a ajuda a viver, mesmo que sua própria morte seja o estopim, mas é também quem segura sua mão nos momentos mais baixos, uma figura presente e alegre que é a antítese da tristeza e deslocamento da narrativa. A mulher mais velha não vê problema em ser diferente, ri e enfrenta quem vê graça em sua personalidade, aproveita intensamente cada oportunidade da vida, lida com seus vícios de forma positiva e divide sua gentileza com quem precisa.
O horror do arco de Gilbert é não só ter caído em uma família adotiva muito pior, mas não ter esse personagem de apoio, encontrando amizade apenas nas cartas com Grace e em um dos irmãos que pouco pode fazer, tão oprimido pelo sistema fanático religioso do lar em que vivem quanto os outros. Elliot levanta aqui uma violência bastante dolorosa, que usa as particularidades do irmão gêmeo em outra perspectiva. Sua atração pelo fogo se torna sua quase morte e sua sexualidade o leva a uma rejeição muito mais pesada, uma ameaça a sua própria vida pela doença preconceituosa da família terrível em que foi parar. A jornada de Gilbert é imensamente mais triste e com menos perspectivas que a de Grace, mas a pessoa espectadora acompanha pelo ponto de vista da narradora somente aquilo que chega a seu conhecimento pelas cartas, ainda assim, há na atmosfera de suas cenas, um ódio crescente no irmão, que se vê projetado nos cenários mais obscuros e uma outra forma de retratar o enclausuramento, nesse caso não intencional ou buscado pelo personagem como fuga emocional, mas imposto a ele por um ambiente opressivo e perigoso.
Elliot poderia seguir em frente deixando seu rastro de melancolia que enxerga na vida um realismo muito pessimista, encarando objetivamente todas as tristezas que vem no pacote, mas Memórias de um Caracol aproveita a mágica do cinema, uma arte que corre nas veias da família de Grace, para salvar nossa esperança de viver nos últimos minutos. Ver o pequeno anel de caracol brilhando quando Gilbert aparece na primeira exibição do filme da irmã é o lampejo de alegria mais adorável que senti nos últimos tempos. Mesmo mundos de tons bege e preto podem reproduzir felicidade, já que cada particularidade é o que torna algo especial.
Nota da crítica:
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