Buscando sentido por meio do amor, Bonello discute as mudanças do mundo, das técnicas e seus efeitos na humanidade e como o cinema as retrata e as absorve para si
A tela verde, com Gabrielle (Léa Seydoux) confinada em uma razão de aspecto apertada, convidada a atuar com uma besta invisível, poderia ser apenas mais um comentário sobre a artificialidade que alguns cinemas têm tomado posse, em busca de narrativas cada vez mais sintéticas e editáveis na pós-produção - ironicamente tentando emular a realidade - mas, Bertrand Bonello pretende ir além disso em seu filme. Entre as transições que abrem espaço na tela e a maleabilidade do tempo pelo qual Gabrielle sempre percorre para encontrar o mesmo homem, a besta que não podemos ver, mas é uma ameaça constante, se revela um peso de uma angústia social latente. Nesse tempo, que pode ser futuro ou presente, os sentimentos se tornaram ameaças e a inteligência artificial se tornou mais importante que o ser humano cheio de emoções, mas a forma como o diretor tece seus comentários jamais os torna pedantes, e sim quase uma preocupação legítima com os rumos que o mundo está tomando e como tudo, inclusive a arte, se molda às mudanças. Os dois amantes nunca estão no mesmo lugar, emocionalmente falando, já que se encontram não importa o cenário. Louis (George MacKay) estaria disposto a ficar com Gabrielle num passado romântico distante, em que o amor parecia mais real e possível, mas tudo acaba em tragédia. Em outros momentos, tudo vai se tornando mais plástico, pelas bonecas que precisam ser adaptadas para soarem mais realistas, ou os corpos das mulheres que precisam ser trabalhados em cirurgias, o tempo que avança, a modernidade que chega, são fatores que afastam os amantes cada vez mais, colocando um amor quase frio em tela, impossível de se concretizar pelos desencontros de seus próprios interiores, mas também de toda ação das mudanças do mundo.
Quase poético, realmente, mas curiosamente, Bonello apela ao melodrama para construir seu romance apenas em suas cenas de época, transitando em linguagens para acertar seus alvos. Talvez o amor real tenha ficado no passado e o que vivemos agora é apenas uma adaptação prática do que restou? Parece que o tom de desesperança do filme se concentra todo em Gabrielle, a personagem que se faz mais consciente de tudo que se altera ao seu redor, e que resiste tanto às transformações quanto à ideia de resetar seus sentimentos mais fortes. Ao longo dos cenários em que é introduzida, suas emoções parecem inalteráveis, enquanto observamos um mundo esvaziado, literal e metaforicamente, com pessoas que se afastam, não se tocam e agem mecanicamente. A arte transita também, nos comerciais filmados totalmente em fundos verdes, com apenas uma atriz, nas exposições de arte vazias e nas músicas, repetidas pela nostalgia que busca no passado alguma forma de se divertir nesse universo tão sem graça. O plástico maleável que tenta ser mais realista é também o material mais inflamável, os cenários facilmente alteráveis na edição são também os mais frios, as interações humanas com DNA purificado são as mais simplificadas e também as mais distantes e vazias. É impossível sentir, logo, é difícil de retratar.
O certo alívio de Gabrielle em notar que suas emoções mais fortes não poderão ser alteradas nesse processo de purificação, vem seguido de um desespero. A taxa de falha, de menos de 1%, a torna uma peça isolada nesse mundo tomado por mudanças, mas Bertrand Bonello nunca se deixa sozinho em suas ideias. As referências de outros diretores e diretoras também angustiados ou fascinados com o destino do mundo e da arte nesse caminho de artificialismos que nossa relação com a tecnologia vem trazendo, podem ser ligadas a Cronenberg, irmãs Wachowski, David Lynch, De Palma, e até a Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças. Ocorre que mesmo que o diretor se cerque de inspirações e tente abordar tantos temas ao mesmo tempo, seu resultado final é algo tão bonito quanto desolador, não se perde demais em suas voltas e consegue levar a complexidade de todos seu comentários ao mundo em que vivemos, como nos relacionamos e como tudo está se transformando. É pertinente, então, trazer tanto de outros cineastas e de outros longas para sua obra, se tudo está em metamorfose e o resgate ao passado pode ser a única forma de encontrar os sentimentos reais e verdadeiros, não os de plástico moldável, olhar para trás no caminho da arte é a saída de Bonello para retratar o amor, entre humanos e entre suas criações.
O que soa como um apanhado de angústias em A Besta, dá margem para diversas identificações e interpretações, em que o diretor abre esse universo criado por ele para que cada pessoa enxergue sua própria besta, o monstro que te ameaça. O grito desesperado de Léa Seydoux fecha o tom de desesperança com o futuro tanto quanto o QR code que pode ser lido na tela, para que cada espectador busque fora do cinema os créditos e uma cena final, um tanto irrelevante narrativamente, devo dizer, mas pertinente para os comentários do longa. Onde vamos chegar com tudo isso? Não sabemos, mas é certamente pelo cinema que Bonello quer traçar essa compreensão.
Essa crítica faz parte da cobertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Nota da crítica:
Comments