Retirado de um universo decadente, triste e sujo de Bukowski, o longa de Eduardo Morotó emoldura encontros de uma vida miserável
Ao adentrar esse lugar obscuro e sem vida, é possível relacionar o trabalho de Morotó à algumas obras literárias diversas vezes, portanto não é surpresa nenhuma que o longa seja inspirado nas páginas de Bukowski e é efetivo em conversar com esse universo. A Morte Habita à Noite exala miséria, tristeza e solidão, enquanto segue Raul (Roney Villela) pelos cantos mais cinzas da cidade, onde todos perambulam como fantasmas. A câmera permanece distante e em muitos momentos parada, com uma estética teatral que emoldura essas pessoas em seus cenários decadentes, os observando em planos abertos, cercados por tudo aquilo que traduz seus estados de espírito.
É possível resumir o filme em três encontros de Raul com mulheres que trazem algum significado à sua vida vazia. Lígia, a namorada com quem vivia, se mostra desgastada pela falta que os cerca. A morte que é olhada com banalidade pelo escritor, a impacta muito mais, como se dentro dela ainda houvesse um tanto de alma, uma fome que não cabe na miséria do apartamento sujo que dividem. Cássia entra na jornada desse homem trazendo alguma vida, ainda que seja uma pessoa tão morta por dentro quanto as outras. Sua insistência em permanecer ao lado de Raul é como uma busca desesperançosa de pertencimento, de trazer algum conforto a uma existência tão dura, como colocar uma flor numa janela que nunca vê o sol. A última mulher já chega praticamente morta, é um corpo, como tantos outros, uma peça que faz o escritor refletir sobre suas próprias questões.
O texto, muitas vezes poético, reflete a aura romântica de Raul, que deposita em suas escritas tudo que sente e tudo que vive em seus encontros com essas mulheres. Como se elas fossem apenas um meio para suas palavras existirem, personagens soltas em suas histórias, que mesmo que tentem preencher algum vazio, nelas e nele, é em vão, pois todos nesse purgatório estão fadados à uma vida escura, de miséria e solidão. Enquanto pessoas se jogam de prédios, se cortam e se drogam, não há praticamente nenhum afeto, abraço ou beijo, e o conforto é quase sempre um cigarro ou um copo de bebida. Sobram as faltas, de esperança, de saúde, de dinheiro, de comida e de amor.
Não há quase luz no longa, mesmo de dia as paredes sujas escurecem os ambientes e os personagens perambulam pela cidade sempre a noite, em bares ou por ruas vazias, em um lugar que parece esquecido, abaixo do restante da sociedade. Morotó constrói, portanto, muito bem essa atmosfera soturna, tanto visualmente quanto no texto e atuação, encaixando bem todas as peças. Aqui, é como se a tristeza fosse a lei, e a mazela a única forma de viver. Não há ambições de algo melhor, uma busca por viver, amar e ser feliz, apenas uma conformidade com esse destino. As pessoas aceitam suas realidades duras e suas dores, talvez porque não exista outra opção. Alguns sobrevivem como podem, encontram certo alento nos copos, nas cinzas ou nos outros, e alguns abandonam suas matérias vazias.
Assim, o filme parece traduzir perfeitamente como seus personagens se sentem, sem tornar tedioso esse caminho por sentimentos tão pesados e destrutivos. É uma imersão por um mundo obscuro e marginal, pessimista mas poético, uma obra com mais alma que os corpos que ilustram sua história.
Filme assistido à convite da Sinny Assessoria e Vitrine Filmes — A Morte Habita à Noite chega aos cinemas em 15 de dezembro.
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