Justine Triet controla sua narrativa para nunca deixar a verdade escapar, instigando constantemente o espectador com atuação marcante de Sandra Hüller
Ao longo de tantos anos de cinema, os filmes de tribunais que geralmente prevalecem em nosso imaginário são os estadunidenses, o soft power dos EUA é tão marcante que em qualquer lugar do mundo é possível saber uma ou outra regra dos julgamentos de lá por suas inúmeras representações no audiovisual. Talvez por isso as tantas cenas dentro do tribunal francês de Anatomia De Uma Queda causam um estranhamento por sua condução, pelas muitas suposições realizadas por advogados e promotores ou pela forma como todos se comunicam livremente sobre o que pensam. Fato é que esse jeitinho francês de tocar seus julgamentos se atrela diretamente à proposta de Triet, de destrinchar o que é a verdade até sua exaustão, para compreender que existem diversas verdades, principalmente a que nunca teremos como conhecer. O controle, portanto, dessa única versão impossível de ser explicada, cabe somente à sua criadora, jamais exibida ao espectador, que é deixado como um membro de um júri, livre para escolher ou criar a versão que mais lhe parecer plausível. É através do que não é visto que a diretora - que venceu a Palma de Ouro com o longa - manipula a percepção, se valendo muito do uso do som para sempre omitir visualmente o que pode ser decisivo na compreensão dos fatos, mas ainda assim construir algo na mente de quem assiste. Da música alta que vem do sótão, dando a entender que há uma pessoa ali, oculta, fora do nosso domínio visual da tela, até o momento marcante em que há a reconstrução visual de uma briga do casal, imediatamente interrompida no momento em que algo que pode comprometer a verdade intocável ocorre, nos deixando apenas com o som para construir diversas narrativas em quem o escuta. Triet não tem interesse, portanto, em absolver ou condenar, mas em brincar com o imaginário.
O acontecimento que justifica o filme, um corpo caído na neve, parece algo tão pequeno e corriqueiro desde o começo que tudo que se desenrola em consequência disso vai se tornando quase um espetáculo. Não há nenhum indício ou intenção na condução das cenas iniciais que leve a crer que a morte daquele homem foi algo suspeito, a presença do corpo com sangue no cenário gelado e branco carrega um tom trágico, mas não levanta questões. Essas são inseridas primeiramente quase de forma invisível, com Sandra (Sandra Hüller) conversando com seu advogado (Swann Arlaud), enquanto tudo parece ocorrer num campo de ideias muito menores do que virá a ser o tamanho da autópsia do caso nos tribunais. Essa crescente proporção dos acontecimentos é traduzida visualmente por uma abordagem quase documental, que se apoia em diversas lentes e pontos de vista observando por todos os lados a casa e a vida dessa mulher que pode ou não ter matado o marido. É uma emulação de realidade performada, que Sandra Hüller domina completamente, assim como todo o filme, com uma personagem sempre sendo destacada por sua personalidade, uma mulher que não se deixa dobrar por nada, que se mantém sólida em suas ideias e posicionamentos, não importa quem a confronte. A diretora não pretende se posicionar aqui sobre o que Sandra fez ou não fez, mas o poder da presença dessa mulher torna inevitável um magnetismo que mesmo que seja possível perceber nela algo muito duvidoso, é muito mais interessante a observar, esperando que a qualquer momento ela nos dê um sinal, do que realmente a julgar.
Acredito que se torna então muito mais curioso aqui a relação de Sandra com seus observadores, seu filho, pessoas presentes no tribunal, pessoas além da tela e afins, do que dar-lhe um veredito. Em diversos momentos sua figura é apequenada ao fundo, enquanto a imagem à frente e desfocada do filho a assistindo depor quase a cobre. A verdade que apenas Justine Triet controla nunca é revelada, portanto resta a todos os personagens, principalmente seu filho, lidarem com o que absorvem de Sandra, da imagem dessa pessoa que é criada mentalmente neles com o que ela mesma relata, mas também do que as muitas pessoas ali tem a dizer sobre ela. Da mesma forma, é dado espaço para o espectador imaginar diversos cenários, mas nenhum deles realmente importa, já que a todo momento parece criar-se uma expectativa de que essa mulher intrigante vai nos acenar algo. É ela que importa, sua imagem real ou criada, manipulada por ela ou pelo filme, as muitas pessoas que ela pode ser a partir de cada verdade possível.
É quase cômico o quão trivial tudo é, das relações familiares até as brigas mais intensas, tudo que é apresentado não basta de fragmentos de uma vida comum de pessoas bastante normais. Discussões entre um casal, rancores, acidentes, traições e até mesmo as partes mais agressivas, são colocadas em julgamento, espetacularizando um cotidiano que poderia pertencer a qualquer pessoa, em qualquer lugar, mas que se torna um amontoado de evidências quando uma morte acontece. Olhar com uma lupa para qualquer família pode gerar dúvidas se uma ou outra pessoa ali não seria capaz de matar a outra, bem como uma delas se jogar de uma janela. Assim, Triet pega o simples e com um bom controle de sua direção e uma grande performance de sua protagonista, transforma em algo que nunca, jamais, perderá nossa atenção, mas também nos mantém como pessoas comuns, sem nenhum privilégio no desvendar de sua história.
Essa crítica faz parte da cobertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Nota da crítica:
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