Até Janeiro de 2024, O IMS de São Paulo exibe uma seleção de filmes do acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir com curadoria de Barbara Alves Rangel
No dia 26 de Julho, O IMS de São Paulo (Paulista) iniciou uma mostra de filmes que ficará em cartaz até janeiro de 2024, e nessa semana de abertura a curadora e diretora-geral do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir esteve presente nas sessões para falar um pouco mais das obras exibidas e o projeto. Fundado em 1982 pelas cineastas e militantes Delphine Seyrig, Carole Roussopoulos e Ioana Wieder, o Centro reúne e atua na preservação do arquivo audiovisual produzido por mulheres desde 1960, quando coletivos feministas começaram a usar filmes e materiais audiovisuais para difundir suas pautas.
A mostra conta com a maior retrospectiva desse acervo já realizada no Brasil, com representações não apenas da França, mas de diversos países e filmes antigos, raros e restaurados, mas também contemporâneos que fazem parte dos arquivos do Centro. Filmes nunca exibidos como Inês (Delphine Seyrig, 1974), sobre Inês Etienne Romeu, presa na ditadura brasileira, e outras obras sobre personalidades importantes, trabalhadoras e movimentos sociais serão exibidos ao longo dos meses. Tive a oportunidade de assistir a três filmes nessa primeira semana, dois deles de Carole Roussopoulos, difíceis de encontrar e um longa de Delphine Seyrig, totalmente restaurado, numa experiência única de assistir na tela grande o filme de uma mulher tão importante para o cinema, tanto nos filmes que dirigiu como nos que atuou, sendo protagonista do meu favorito Jeanne Dielman (Chantal Akerman, 1975).
Falo um pouco a seguir sobre os primeiros assistidos da mostra, que serão exibidos novamente em Agosto.
Profissão: Ostreicultora + As Trabalhadoras do Mar
Carole Roussopoulos e Claude Vauclaire, 1984
Carole Roussopoulos, 1985
Ambos curtas documentais de Carole, realizados por seu coletivo militante de vídeos, que era formado por ela e seu marido, o Video Out, são exibidos juntos na mostra em um paralelo muito interessante.
Profissão: Ostreicultora faz um trabalho de escuta das mulheres que trabalham com ostras e mexilhões e por meio de seus depoimentos e de pessoas próximas a elas, monta essa ocupação como um orgulho para essas mulheres, que representa força e coragem, mas também como um meio de independência, um trabalho que a longo prazo garante um sustento sem depender de outros e que mesmo quando é dividido com seus maridos, tem previsões legais para que não exista nenhuma injustiça na partilha. Apesar de uma atividade dura, por meio de seus próprios olhares e dos ao redor delas, o filme as retrata como mulheres fortes e independentes, seguras de que suas funções são melhores caminhos que os esperados delas: donas de casa ou domésticas.
Já em As Trabalhadoras do Mar, as mulheres que trabalham no porto com os peixes e outros seres marítimos são trabalhadoras exploradas, ganham pouco e quase não tem direitos, existe uma melancolia quando olhamos para elas, Roussopoulos até se aproxima mais ao ver suas dores. São retratadas muitas problemáticas, desde físicas até emocionais, que em Profissão: Ostreicultora também existem, mas ficam muito mais num lugar de força do que de injustiça. O que une ambos é que Carole não busca julgar por si mesma ou conduzir uma investigação sobre as ocupações dessas mulheres, problemas sociais e afins, mas sim dar espaço para escutá-las (e também suas comunidades) e assim construir esse retrato pela visão das que realmente vivem aquilo na pele. Somos meros convidados a adentrar nessas realidades por alguns minutos e entender como elas se sentem e o que pensam, como se enxergam no mundo e em seus trabalhos.
As Trabalhadoras do Mar é muito mais pessimista nesse sentido (ainda que tenha uma trilha sonora e a narrativa seja menos crua do que em Profissão: Ostreicultora, que parece mais frio e distante), por essas mulheres compartilharem as explorações que sofrem e como o trabalho no porto é uma consequência da falta de opção em suas vidas. Ainda que exista algo similar em Profissão: Ostreicultora, as mulheres que trabalham com as ostras se sentem muito mais autosuficientes em suas jornadas de trabalho, e é isso que importa para Roussopoulos, as escutar, compreender seus pontos de vista.
Seja Bela e Cale a Boca!
Delphine Seyrig, 1976 (lançado oficialmente em 1981)
Gravado em dois momentos diferentes, na França e nos Estados Unidos, Delphine entrevista 23 atrizes de várias nacionalidades para compreender o papel da mulher na indústria cinematográfica.
O filme tem um belo trabalho de restauração do Serviço Audiovisual da Biblioteca Nacional da França, com partes recuperadas em som e imagem, algumas com a dublagem francesa e outras com áudio original restaurado. É interessantíssimo ver tantas atrizes conhecidas falando à vontade com a câmera e respondendo a perguntas que provavelmente nunca tinham sido feitas antes. Entre as entrevistadas estão: Jane Fonda, Shirley MacLaine, Marie Dubois, Maria Schneider, Juliet Berto, Patti D'Arbanville, Anne Wiazemsky e Ellen Burstyn. Delphine Seyrig pode estar atrás das câmeras, mas conduz suas perguntas para chegar onde quer. Muitas dessas atrizes só atuavam em papéis estereotipados, principalmente em Hollywood, e comentam as poucas oportunidades disponíveis e como a indústria as enxerga, sem nunca serem retratadas (como mulheres) da forma que gostariam. Delphine sabe bem as críticas que quer fazer e cutuca as feridas dessas mulheres, investiga, levantando reflexões nelas mesmas. Muitas ficam surpresas com questões que nunca tinham pensado antes, como a forma que relações entre mulheres eram colocadas nos filmes em comparação às relações entre homens, outras já parecem mais desgastadas e elucidadas com esses debates, como Jane Fonda, que sempre foi ativa em diversas causas políticas. Ao contrário dos documentários de Carole (que também faz parte da equipe do longa), os quais buscavam observar e entender o ponto de vista das trabalhadoras, Seyrig quer construir com as respostas das atrizes uma crítica que ela mesma já compreende.
A relação da diretora com suas entrevistadas é essencial para esse objetivo, ela se faz presente mesmo sem ser vista, e seja por já conhecer a atriz que está na frente da câmera ou simplesmente por ser uma mulher e colega de profissão, consegue extrair conversas muito naturais e reflexões espontâneas. É como se alguém perguntasse pela primeira vez o que aquelas mulheres têm a dizer sobre seus trabalhos, e o resultado é um debate que, ainda que muitas coisas possam ter mudado, segue pertinente até hoje.
Esses são apenas alguns exemplos que também serão reprisados ao longo das semanas e, é importante lembrar, muitos dos filmes selecionados são bem raros de encontrar, então torço para que a mostra chegue a mais lugares e essas obras sejam disponibilizadas para todos. Se você está na cidade de São Paulo, vale muito a pena conferir.
A programação da mostra: Arquivos, Vídeos e Feminismos - O acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir é liberada mensalmente e você pode conferir os filmes que serão exibidos no site do IMS Paulista. Os ingressos custam R$10 (inteira) e R$5 (meia, estudante e cartão itaú).
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