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BIFFF 2025 | Sister Midnight

Karan Kandhari usa a fantasia para retratar a natureza feminina em rebeldia contra as tradições de uma sociedade 

Sister Midnight review

“Ser humano é difícil, qual a sua desculpa?”, diz Uma (Radhika Apte) em dado momento, após ser chamada de monstro. O roteiro, do também diretor, Karan Kandhari, poderia facilmente trocar a palavra “humano” por “mulher” e seria ainda mais preciso com o que Sister Midnight tem a dizer. O casal que acaba de se casar de forma arranjada, praticamente desconhecidos que haviam tido um breve contato na infância, embarca em um trem para Mumbai para seu novo lar, ou quase isso. O cubículo em que vivem é basicamente um quarto com uma pequena janela, escuro e bagunçado. Esse começo de vida juntos é traduzido pela total desconexão de ambos, a irritação de Uma com sua nova situação e o embate entre tradição e modernidade na maior cidade da Índia, em que ao lado da pequena comunidade de esposas e maridos, há uma construção de um edifício de luxo, trajes tradicionais dividem as ruas com mulheres em roupas sociais e por aí vai. Kandhari usa a fantasia em uma trama imprevisível em que se tornar uma esposa comum rebela a natureza feminina e evoca monstruosidade.


O período após o casamento, pensado como uma lua de mel em que o casal se torna ainda mais próximo e vive dias felizes, é satirizado por Sister Midnight a partir do arranjo que joga dois desconhecidos em um quarto e os força a construírem intimidade em papeis de gênero muito bem demarcados pela sociedade. Gopal (Ashok Pathak), o marido meio bobo, sai de casa todos os dias para trabalhar e em muitas noites não volta, fica bêbado nas ruas, enquanto é esperado de Uma que aprenda a administrar o “lar”, cozinhar, cuidar do dinheiro para durar toda a semana e ainda suprir as necessidades físicas do homem. Sua irritação é imediata e um gatilho interessantíssimo da abordagem cômica do longa. Ao ver a vida que ganhou com o casamento, a mulher se torna a caracterização do estresse. 


As vizinhas casadas observam e fofocam enquanto ela levanta os braços e chacoalha suas pulseiras para justificar seu comportamento. Esses adereços, uma tradição indiana, são colocados em recém-casadas como sinal de boa sorte, prosperidade e vida longa do marido. Devem ser usadas até cair e rompê-las é sinal de péssima sorte. Porém, o barulho constante dos acessórios nos braços, dela e de outras mulheres que vê nas ruas, e a forma como ela sempre as exibe nos pulsos, alude mais a uma representação das algemas do matrimônio convencional. Se são elas que indicam que essa mulher agora deve cozinhar e permanecer o dia todo entediada em um cubículo escuro aguardando o marido chegar, Uma rapidamente pede a uma homem que as quebre, respondendo afiadamente quando questionada sobre o azar que virá.


Sister Midnight brinca bastante com a mudança rápida entre dia e noite e os movimentos muito marcados das atuações, isso ajuda a sátira a ser mais cômica, reforça a persona irritada de Uma e dá ênfase à rotina. Todos os dias são iguais, as mulheres vivem um tédio só em casa, Uma faz amizade com a vizinha e elas tentam juntas fazer algo além de olhar para as paredes e, em um desespero ainda maior, a protagonista arruma um emprego bem longe de casa, fazendo faxina nas madrugadas. Aos poucos, seu corpo torna-se pálido e doente, Uma vai se transformando em uma criatura que sente frio no sol, tem aversão à claridade e não consegue se alimentar como as outras pessoas. 


Então, Kandhari insere os animais como presas de Uma, e em sua liberdade da fantasia, os faz com stop motion, indo de encontro aos movimentos muito marcados dos personagens, que agora se tornam ainda mais cômicos com os cabritinhos estranhamente animados. Sister Midnight não tem compromisso com a realidade, ainda bem. Como uma espécie de vampira, a mulher pede desculpas aos animais e quase os mumifica, mantendo seus corpos. Curiosamente, esse processo em que seu corpo se rebela contra as tradições matrimoniais e imposições de gênero, resulta na aproximação com Gopal, que mostra-se um personagem muito carismático. Enquanto o casal vai construindo uma amizade nada convencional a partir dessa cumplicidade vampiresca, o filme ganha um fôlego bem agradável que se perde um pouco quando o marido sai de cena.


Uma acredita que Gopal retornará à “vida” como todos os ratos, passarinhos e cabritinhos de quem ela sugou o sangue nos últimos tempos, mas o cadáver apodrece e a reclusão do casal torna-se boato de bruxaria na pequena comunidade. Assim, Sister Midnight embarca em outra viagem, na qual Uma precisa conhecer-se sozinha e encarar uma vida de forasteira. Kandhari brinca com o horror, a comédia, a fantasia, até a comédia romântica e o faroeste, suas imagens são vívidas e a relação de Uma com os espaços ao redor, principalmente com a cidade, é bastante interessante para compor a sátira à sociedade indiana. Sua viagem com o corpo do marido e, após sua cremação, tem menos energia que o restante, pois Gopal fazia um balanço bem rico com a protagonista, em personalidade e para compor as cenas, mas a constante irritação da mulher com o mundo segue divertida.


A atitude de Uma em relação ao mundo é um grande “foda-se”, difícil pensar em outro termo. Arrancar as pulseiras-algemas do casamento é o primeiro sinal de embate ao tradicional e daí pra frente, Sister Midnight vai surpreender com cada novo passo. Ser mulher é difícil e Kandhari é sagaz em seu retrato desse sentimento. 



Nota da crítica:

3.5/5


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