Documentário Finlandês olha para o parto de forma quase mística, sem deixar de lado as dores e a medicina, mas buscando caminhos mais humanos
A primeira vez que eu tive contato e conhecimento do que era um parto humanizado e como eram as violências que uma mulher podia sofrer nesse momento foi quando o documentário brasileiro O Renascimento do Parto (2013) foi lançado. Embora seja um filme de um diretor, Eduardo Chauvet, fiquei muito impactada e marcada pelas informações ali contidas, no fim acaba sendo um filme que tem um propósito educativo muito forte nesse sentido, é difícil esquecer o que se descobre ali. The Labour of Pain and Joy, da diretora Karoliina Gröndahl, partilha de certa forma a mesma temática, a transpondo para sua realidade distante de nós, mas indo para um caminho muito mais humano e conectado com algo instintivo. Não demora muito até que a primeira cena exibindo um bebê nascendo seja mostrada, mas Karoliina parece quase pedir permissão para entrar naquele íntimo, devagar, sem revelar muito, até que o sangue apareça e o pequeno humano seja revelado. Mesmo dentro do hospital, lugar em que menos veremos partos nesse filme, ainda existe muito da essência que o documentário quer passar, em que cada nascimento é uma comoção. Há uma energia feminina muito grande que ronda os espaços das cenas filmadas, mas a doula Anna-Riitta faz questão de ressaltar que a busca por um atendimento mais humano deve ser para todas as pessoas com útero, independente do gênero com o qual se identificam, um esforço que se reflete em como se comunicam também. Mais de 10 anos no passado seria difícil imaginar isso sendo falado em um documentário com esse tema e, assim, mesmo que tudo pareça transpirar uma ideia de “sagrado feminino” essas questões nunca são realmente faladas ou levantadas, o ser mulher não parece ser o centro, e sim o poder do corpo de gerar, gestar e parir outro ser humano.
É algo muito próximo da natureza que Karoliina parece buscar, com a união de gestantes, doulas e aprendizes de doulas em um coletivo que reúne o poder no instinto, afinal, dar à luz é algo bastante natural de qualquer animal. Ainda que sua trilha sonora, todos os processos que envolvem a placenta e os rituais caminhem nesse sentido, o filme não esquece nunca que a medicina e a ciência também são importantes, seja pelo trabalho de Kirsi no hospital público, por todo aparato necessário para as doulas assistirem partos em casa ou pelas conversas em muitas cenas que falam de intervenções médicas. A questão é definir aqui o que é violência, onde está o limite que não deve ser passado, de consentimento e respeito com o corpo, e em quais pontos essas pessoas devem estar abertas a mudanças nos seus planos para terem um nascimento seguro e saudável de seus bebês. Ao comparar com a realidade que se pode conhecer no Brasil, The Labour of Pain and Joy pode até falar de temas que convergem, mas estamos em lugares bastante diferentes tanto culturalmente, embora seja possível encontrar coisas muito parecidas por aqui no sentido ritualístico dos partos em casa, e socialmente. O hospital público retratado em que Kirsi atende parturientes é o atendimento majoritário para partos na Finlândia e os nascimentos em casa, com doulas, não são cobertos pela saúde pública, portanto essa observação cinematográfica acaba revelando que ter opção também é uma questão de classe social, ainda que não seja objetivo da obra explorar essas diferenças realmente, todas as pessoas e ambientes parecem bem assistidos e estruturados, não há um retrato de desigualdade, esse debate fica fora das telas, a não ser por essa pista deixada pela falta de escolha do nascimento em casa, com doulas.
O ponto de The Labour of Pain and Joy parece muito mais alinhado a um retrato íntimo dessa possibilidade mais humana, do esforço dessas doulas de levarem às pessoas um acolhimento que as dá poder e move o nascimento para esse momento instintivo e natural. Há uma consciência que permite discutir as experiências que tenham passado de seus limites, tornando essa vivência quase um resgate ancestral, mas que também compreende que os avanços da ciência estão ali para salvar vidas. Por esse acesso íntimo que o documentário dá a essas vidas e momentos tão importantes, seus diálogos soam como terapias em que elas mesmas se conciliam com seus traumas passados e aprendem a lidar com os medos futuros. Assim, Karoliina consegue fazer com que cada cena de parto, cada nascimento que as câmeras captam se torne um acontecimento único e emocionante, colocando o espectador como um convidado muito próximo nessas ocasiões em que a dor é acolhida, faz parte, como todos os outros sentimentos ruins que podem vir, mas é a vida começando que parece resolver tudo e culminar em um coletivo quase místico que recebe esse novo ser com muita alegria.
Esse texto faz parte da cobertura da CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2024
Nota da crítica:
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