Em observações espaçadas ao longo de sete anos, o documentário busca as problemáticas do radicalismo e a dualidade na mulher que vê seu ódio perder o sentido aos poucos
Não há rodeios em mostrar o ódio dentro de Gerel. A câmera muito próxima de seu rosto parece ouvir como uma cúmplice algo que ela diz ao telefone sobre os chineses. Mas os sentimentos fortes dessa mulher vão muito além e, embora o documentário não faça questão de explorar historicamente as questões da Mongólia, acaba o fazendo de certa forma, ainda que superficialmente, por meio de suas observações dessa mulher que revela em seus diálogos como as relações entre sua nação e a China a tornaram a pessoa dura que se vê no começo do filme. É um ponto de vista bastante individual que não busca compreender coletivamente como esse lugar é afetado pelos países ao seu redor, como chegaram ali os grupos violentos, ou como sua população realmente se sente com tudo isso, importa aos diretores Christian Als e Kristoffer Juel Poulsen apenas essa relação mais íntima com Gerel e seu filho, que representam uma parcela radical e ultranacionalista. Não há julgamentos na abordagem do longa, porém a observação que se faz puramente dessa forma, sem jamais interagir ou interferir no que é mostrado, procura realçar uma dualidade em sua personagem principal. São questões complexas, por diversos fatores, que levam essa realidade para um lugar distante de muitos espectadores, principalmente ocidentais, o que parece ser o caso também dos realizadores, portanto esse distanciamento que permite olhar para Gerel em todas as nuances de suas atitudes se torna interessante e pode até ser mais prudente, mas também peca ao não se aprofundar nos contextos ao seu redor. A ambiguidade que o filme busca na mulher mora na dureza e crueldade de seus atos de revolta, na postura rígida de suas crenças, que começam a adoecer por dentro, ao lado de uma maternidade solo, um luto e a constante batalha para criar e sustentar seu filho em meio a essas questões.
São closes em seu rosto muito firme seguidos por imagens de mulheres humilhadas, flagradas trabalhando em bordéis, em contraste com seu cuidado com o pequeno menino que começam a formar o tom que o documentário quer. Não é vilanizar Gerel, mas mostrar toda a complexidade dessa mulher, que parece encontrar no tratamento vexatório uma solução para o fim da prostituição de mulheres na Mongólia, e situar seus sentimentos profundos, até hereditários, de manter seu país. De certa forma a direção investiga suas contradições, como aparenta querer algo bom para seus país e para as mulheres, enquanto tem atitudes terríveis e espalha o ódio. É bastante doloroso observar seus atos com outras mulheres, mas a abordagem permite que o espectador se coloque nesse lugar de um mero observador que não é capaz de compreender totalmente aquela personagem, levada por uma ideologia perigosa, radical e extremamente violenta. Aos poucos os anos vão se passando, sem indicações, apenas é possível notar pelo crescimento do menino e a mudança das coisas que a passagem de tempo ocorreu e, com isso, é o semblante de Gerel que também se modifica. A posição muito dura da mulher, como ela acredita ter uma obrigação de legado tão potente que começa a deteriorar seu corpo por dentro, tudo vai se perdendo, junto com a movimentação de seu grupo na Mongólia.
A falta de foco de sua organização aumenta enquanto seus símbolos são usados por neonazistas - Gerel nega que a suástica que usa seja alinhada com essa ideologia - e as pessoas precisam buscar formas de sobreviver e trabalhar, se distanciando das causas, mas não é que Gerel se torne mais maleável e suave nesse processo, é possível enxergar uma dor em seu rosto, de ser forçada a se conformar com algumas questões e precisar seguir em frente. Para criar o filho, que amadurece ao longo das filmagens, ela precisa aceitar um emprego em uma empresa chinesa, seu grupo se desmonta e poucos seguem resistentes com o que acreditam. Não é que o radicalismo parecesse bom ou saudável, muito pelo contrário, mas era o que essa mulher acreditava estar alinhado com seus propósitos, no entanto, se isso era algo que ela mesma pensava, se foram motivações criadas por outros ou por uma ameaça fascista, nada disso é avaliado com profundidade. Sua mudança gradual soa como um alívio e a ver encontrar caminhos mais pacíficos é certamente o ponto em que o filme quer chegar, em uma espécie de libertação, mesmo que não provoque nenhum debate político maior com o espectador.
As mudanças de tempo e na vida de Gerel tornam o centro de sua vida a relação com o filho, o filme que sempre focava na distância entre os dois, com a mãe não se permitindo passar mais tempo com o pequeno para se dedicar a suas causas, passa a retratar por mais tempo o esforço de ficarem juntos. Os pedidos negados do menino para ficar com a mulher, os atrasos em buscar na escola e a constante barreira que parecia se formar na comunicação entre ambos - reforçada por uma cena em que Gerel admite a outra pessoa nunca ter contato ao filho quem foi seu pai -, é substituída ao final do longa por uma cumplicidade crescente, culminando na conversa mais honesta entre ambos. É a geração mais nova, do menino, que parece combater o ódio do radicalismo, trazendo um tom de esperança na redenção da mulher ao final. Ainda que o filme não se coloque nessa posição de julgar, toda jornada traçada aqui é de uma vida tóxica sendo aos poucos liberada, de uma personagem falha, mas não puramente má. Com certeza existe muito mais para se entender nessa história, mas Daughter of Genghis se limita a espiar Gerel e entrega a ela mesma a possibilidade de reflexão, enquanto convida o espectador a observar essa pessoa em sua posição individual e complexa.
Filme assistido a convite da Taskovski Films
Esse texto faz parte da cobertura da CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2024
Nota da crítica:
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