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CPH:DOX 2025 | Flophouse America

Retrato gentil de Monica Strømdahl é um ensaio angustiante das consequências sociais e emocionais de uma sociedade falida com promessas inalcançáveis

Flophouse America

Alguns poucos anos atrás, em 2017, o diretor que se tornou vencedor do Oscar 4 vezes por seu filme mais recente, Sean Baker, trouxe ao mundo The Florida Project, que jogava luz, principalmente por meio das crianças, às pessoas vivendo em hotéis nos Estados Unidos, vulneráveis socialmente. Essa obra é lembrada logo de cara quando Flophouse America abre sua narrativa com dados e fatos em tela, escancarando a falência do sonho americano e a imensidão de pessoas sem condições decentes de vida e moradia. A história vem de um interesse da diretora Monica Strømdahl, que é fotógrafa e, ao documentar como as pessoas vivem apertadas em quartos baratos, conheceu a família de Mikal e sentiu a necessidade de transformar seus registros em um filme. A ideia era usar pouco equipamento, com o menor volume possível, para praticamente se misturar ao ambiente, registrando a rotina dessas pessoas sem interferência, o que funcionou muito bem. 


Flophouse America mostra seu protagonista no futuro, aos 18 anos, como que introduzindo sua própria história para que, em seguida, as cenas retornem ao passado. Strømdahl iniciou as filmagens em 2018, quando Mikal tinha apenas 12 anos, e filmou sua família ao longo de três anos. As imagens são sufocantes, acompanhando a dimensão do pequeno quarto de hotel dividido entre o filho, sua mãe Tonya, seu pai Jason e o gato Smokey, curiosamente conferindo tempo de tela suficiente a todos. As lentes de Strømdahl parecem especialmente curiosas ao relacionamento dos familiares com o animal de estimação, uma relação que resume a dinâmica entre os seres vivos e o ambiente em que vivem. Ao mesmo tempo em que amam e cuidam de Smokey, são pouco responsáveis com seu bem-estar, deixando bebidas alcoólicas caírem nele, dando banhos constantes e permitindo que viva numa enorme bagunça. Não é por mal, mostram muita preocupação por ele, e até o sufocam, por vezes, com demonstrações de afeto desmedidas.


É assim que a família vive, com amor e carinho, mas dificuldade em cuidar uns dos outros propriamente, incapacidade em prover o que de fato é necessário para uma criança se desenvolver com segurança, não por maldade, mas por uma triste soma de fatores. Assim, nesse Estados Unidos em que o sonho americano é uma piada, a fotografia remove os tetos dos ambientes, pois não há respiros nem perspectivas, os planos esmagam os personagens, que são vistos quase 100% do tempo de duração dentro do quarto, deitados ou sentados. As câmeras parecem até mesmo pequenos equipamentos escondidos pelos cômodos, mas é a seleção do olhar, que busca as ações e reações das pessoas e do gato, que revelam o trabalho manual por trás. Strømdahl se transforma em um papel de parede, sua presença não é sentida nem mesmo por alguma interação que poderia deixar passar com a família que a recebeu, mas muito notada pelo direcionamento da observação.


A experiência da diretora como fotógrafa é bem usada em seu primeiro longa, pois ela é capaz de captar a energia do ambiente e das relações e a transpor para como apresenta suas imagens. A fotografia é tão angustiante quanto o sentimento de Mikal com os pais, aos quais ele quase sempre se refere pelo primeiro nome, que bebem constantemente e falham ao suprir suas necessidades. Ao mesmo tempo, o quarto de hotel de espaço bastante limitado, filmado de forma a reduzir a noção da pessoa espectadora quanto a sua planta original, confere mais intimidade às interações familiares. O menino, os pais e o gato vivem apertados, por isso no pior e no melhor estão sempre partilhando tudo, seja afeto e consideração, seja seus lados mais dolorosos. Tudo isso é transportado para a tela, por como as cenas são claustrofóbicas e estranhamente gentis ao mesmo tempo. 


Vê-se que o intuito de Flophouse America não é vilanizar pessoas por seus modos de vida, mas compreender o contexto em que estão inseridas e como isso torna suas vivências complexas. É um sistema falido, em que a própria família de Mikal zomba do ideal estadunidense de melhorar de vida e comprar uma casa, esse sonho material que é impossível para eles, ou ao menos lhes parece assim. Esse cenário de vulnerabilidade em que o menino nasceu e cresceu, dificulta muito uma relação funcional com os pais e, de início, até parece que será Jason o fator mais complicado, pois é o primeiro a criar um conflito envolvendo bebida, enquanto Tonya e Mikal são vistos passando bons momentos juntos. Não demora muito até que as cenas mostrem que a mãe tem maiores problemas com o álcool e que o maior ponto de tensão é entre ela e o garoto, que espera uma postura mais estruturada da mãe.


A sensibilidade e gentileza de Strømdahl, uma estrangeira tanto no país quanto na família, para com seus personagens, é tanta, que mesmo com todos os problemas e abusos vistos em tela, é fácil compreender as fraquezas dessas pessoas, as origens de seus problemas e sentir muito mais compaixão por eles do que rancor. A forma de Jason agir e falar é a que mais sintetiza o sentimento, ele parece bastante racional justamente por reconhecer os erros deles como responsáveis, mas ainda incapaz de ser um pai e marido melhor. Assim, Mikal é obrigado a crescer sem esperar muito da família e suprir suas próprias necessidades. Apesar da pilha de frustrações e cicatrizes, percebe-se que ali, cada um faz o que pode e dá o melhor que tem. 


Flophouse America sabe aproveitar muito bem o material humano e transformar as sensações e ideias em imagens, aproveitando a técnica para imprimir tudo isso em tela. Seria fácil uma história como essa render algo de péssimo gosto, uma exploração da miséria e da dor de pessoas em situações precárias, mas Strømdahl confere muito afeto e cuidado, enquanto deixa claro o quão devastadora e claustrofóbica é a vida de quem não tem teto nem perspectiva certa, nesse grande moedor de carne chamado América.



 

Nota da crítica:

4/5


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