Na simplicidade e ultrapassando limitações, Gints Zilbalodis mostra que a paixão é o maior motor da arte
Durante a temporada de premiações de 2024-2025, um gatinho preto chamou a atenção do mundo. Para aqueles que estão acostumados com os milhões investidos em tecnologias para aperfeiçoar a animação de fios de cabelo - um esforço em direção ao máximo de realismo possível que a Disney busca com seus filmes cada vez menos interessantes e que exploram ao máximo continuações -, Flow pode parecer um filme mal feito, o que não poderia estar mais longe da verdade. A categoria de animação no Oscar não é, assim como as demais, uma amostra coerente do universo cinematográfico corrente. No mundo todo, obras com diferentes estéticas, visões e linguagens são produzidas todos os anos e o que se vê nas premiações é apenas um recorte daquilo que, normalmente, se adequa a um certo formato esperado. Há exceções, é claro, mas pensando principalmente na categoria de animação, existem certos estúdios que dominam os indicados e premiados, sendo a categoria de curtas a que mais abarca alguma diversidade na forma.
O filme mudo do gatinho que sobrevive a um mundo pós-apocalíptico em um barco com outros animais, foi feito por Gints Zilbalodis (um nome que é repetido em diversas funções nos créditos), em um software gratuito e open-source. Com um grande apoio de financiamento público, o longa se tornou motivo de orgulho e celebração para a Letônia, ganhou uma estátua na capital e o Globo de Ouro vencido por Flow foi exibido no Museu Nacional de Arte da Letônia, em Riga, recebendo milhares de visitantes. Vencer a Disney, com mais uma sequência, e a DreamWorks, com uma animação também bastante bonita, mas com infinitos recursos a mais, é uma vitória e tanto para uma nação, mas, também, para o cinema.
Pensar todo o contexto ao redor de um filme não é fundamental para sua crítica, porém, os feitos que a arte de Gints Zilbalodis carrega não apenas conversam com uma realidade atual do Brasil, o clima de copa do mundo muito merecido em torno de Ainda Estou Aqui, como também fazem pensar no cinema que vem sendo feito até agora e como ultrapassar certas barreiras para que essa linguagem universal chegue, de fato, ao mundo todo.
Flow, inclusive, fala basicamente de como existem formas de se comunicar acima de qualquer idioma. É um longa de quase 90 minutos em que não existem falas, pois não existem mais humanos. Nesse mundo prestes a alagar, tudo que as pessoas deixaram foram ruínas, como a casa do gatinho protagonista que remete a uma certa adoração por sua figura e, o retorno constante à cama para se deitar, mostra que ali é seu lar. Assim, os animais aprendem a se comunicar para sobreviverem juntos. O gato, um animal tido como solitário e independente (mais mito do que fato), se vê em um barco com amigos nada comuns. O miado, os latidos e outros sons, que misturam animais selvagens e domésticos, servem menos ao propósito do diálogo do que os olhares e posicionamentos corporais. Quando precisam dizer ao pássaro que é preciso parar o barco para resgatar cães ilhados, por exemplo, todos caminham e param à sua frente, o encarando. As reações são todas dadas por expressões faciais, maneiras de agir, olhar ou mover-se.
A definição da animação está longe dos zilhões de outras grandes produções, mas é perfeitamente capaz de expressar sentimentos, palavras e ações, com a simplicidade que é seu fundamento. O mundo coberto de água, sem sinal de humanos, com a natureza invadindo e lutando para conquistar seu espaço, seja pela água ou pelos animais, é um diálogo claro com o presente de extrema insegurança com as catástrofes climáticas. Gints Zilbalodis mostra-se sensível na observação de como os seres mais interessantes do mundo, aqueles que não falam com palavras, se portam, sendo capaz de reproduzir perfeitamente seus gestos e maneiras de ser, mas também ao unir um sentimento de medo do futuro com um alívio otimista que a arte pode fabricar.
A tensão, que vem com o começo da narrativa, ao pensar se o gato preto conseguirá sobreviver, e crescente na construção de compaixão com os demais animais que chegam, vai se diluindo, deixa de ser angústia e se torna admiração. Seres que vivem em grupos e se perdem ou se separam de seus iguais, unem-se a outros solitários, para formar a tripulação de um barco que reflete a característica mais bonita atribuída principalmente aos seres humanos: a empatia. Embora seja inevitável buscar essa proximidade com o universo dominado pelas pessoas, o gato, o lêmure acumulador, o labrador agitado e todos os outros estão apenas seguindo seus instintos animais. Diferente do seu grande competidor, Robô Selvagem, e tantas outras animações gigantes, Flow não quer humanizar seus personagens, por isso os mantém dialogando por olhares e por seus sons característicos, agindo como agem na natureza, mas confrontados por uma dinâmica que os obriga a compreender, em grupo, suas diferenças.
Assim, o “fluxo” , que é a tradução do título original do filme, é também sua linguagem. O barco navega e mais importa à obra essa sucessão de acontecimentos e como os animais, principalmente o gatinho, reagem a eles, do que um destino ou resolução. Não há ponto de chegada certo, na verdade, há apenas o agora, o obstáculo atual, o instinto de sobreviver e o fascínio por observar esses seres interagindo com um mundo em completa mudança. Flow é a essência de um cinema que transmite mensagem e sentimento, acima de tudo, pela imagem - e as constrói belamente independente do orçamento -, e da feitura artística que supera as limitações técnicas. Nos tempos atuais, conquistar o mundo com uma obra sem falas e sem essa ostentação detalhista, é um respiro muito otimista.
Nota da crítica:
5/5
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