Traduzindo a descrença de uma nação com o futuro na grandiosidade e imponência das imagens de seu monstro, Takashi Yamazaki aposta no melodrama para trazer esperança
Ainda que a figura de Godzilla já tenha sido bastante explorada em diversas vertentes, tanto por japoneses quanto por estadunidenses, é notável como Hollywood produziu tantos filmes caros que não chegam aos pés do incrível trabalho de Godzilla Minus One, com um orçamento tão mais baixo. Os modestos 15 milhões de dólares parecem fazer milagres que apenas o cinema poderia conceber, resultando em uma obra grandiosa, de efeitos especiais surpreendentes. Para traduzir o trauma desse Japão destruído após a segunda guerra mundial, Takashi Yamazaki coloca seu protagonista Shikishima (Ryunosuke Kamiki) em um embate entre a vida e a morte, entre obedecer ordens ou sucumbir aos seus instintos mais humanos. Esse homem que deveria ser um piloto kamikaze se acovarda frente aos conflitos finais da guerra, ainda quer sobreviver, mas só encontra motivos para não continuar. Dessa forma, Godzilla Minus One se concentra na população, não em generais, comandantes ou governantes, mas em casas destruídas, famílias dizimadas e a total falta de perspectiva de um povo que não confia nem em seu país, nem em suas chances de seguir em frente. A figura de Godzilla aparece primeiramente como uma representação natural de uma criatura que faz parte daquela região, monstruosa, mas quase comum, como se Yamazaki filmasse um grande leão que invade um vilarejo de pessoas indefesas, não é que a grandiosidade do dinossauro nuclear não pareça indestrutível, mas o foco das cenas é novamente a impotência do piloto em não salvar seu povo. A falta de ação de Shikishima é estressada consecutivamente para refletir a responsabilidade colocada nesses soldados que, no fim, são apenas peças usadas por maiores poderes, incapazes de salvar seu país individualmente, mas ainda assim se sacrificando e se culpando por cada derrota ou morte. É assim que a figura que ainda poderia ser vencida se torna uma ameaça cada vez mais invencível por meio da paralisação de Shikishima, construindo organicamente um melodrama ao redor desse protagonista que nos aproxima e compreende o coletivo como a única forma de reconstruir o país e criar um futuro para essa nação.
A atmosfera de Godzilla Minus One expõe um medo constante dos japoneses, como se a guerra não fosse a única tragédia a os afetar, e a qualquer momento algo fosse devastar novamente tudo que sofridamente levantaram do chão. Os escombros da cidade, modestamente retratados principalmente pela casa de Shikishima e de sua vizinha, não precisam de planos mais abertos constantemente inseridos para lembrar que todo o Japão foi levado à estaca zero. Da mesma forma, a gradual recuperação de sua pequena casa - que vem do dinheiro de um emprego que atua também nos resquícios da guerra - representa os esforços de toda uma população, erguendo aos poucos, pedaço por pedaço, suas casas, edifícios e vidas. Mas a morte não se torna algo esquecido, a ocupação cheia de riscos e os fantasmas que o assombram todas as noites deixam Shikishima sempre nessa fina linha que não o permite viver completamente, nem se entregar ao fim. Na verdade, são muitos os momentos em que ele poderia morrer, mas o filme parece o obrigar a encarar a vida, e a testemunhar o extermínio de seus iguais, bem como ver ruir aquilo que produziram. Nesse sentido, a relação entre ele, Noriko (Minami Hamabe) e a pequena menina, se torna um núcleo em que o melodrama circula sem pesar, mesmo nos momentos mais cafonas, tornando muito fácil nossa aproximação. É também nas amizades, entre ele e seus colegas, assim como com sua vizinha, que Yamazaki foca em uma união da população para um bem maior, mesmo em suas diferenças e problemas, essas pessoas encontram conforto em se apoiarem. Akiko só pode crescer e virar adulta porque dois estranhos se juntaram para não a abandonar, e, da mesma forma, sua vizinha se une para somar nessa criação. O Japão apequenado pela assolação, sem enxergar futuro, precisa de todos esses desconhecidos juntos para criar seu horizonte, para o nutrir e apoiar seu crescimento.
É assim que Godzilla Minus One não apenas ganha muito na ação, como também puxa, por meio dela, a emoção. A grandiosidade das imagens desse monstro, que é praticamente um deus mitológico, se une em um trabalho de som impressionante que usa o contraste para impactar, beirando o ensurdecedor nos rugidos de Godzilla, em seus passos que esmagam tudo e na trilha sonora de graves bem marcados, seguidos de segundos silenciosos que não apenas brincam com nossos ouvidos, mas também com nossos corações, param o tempo para que possamos apenas assistir embasbacados essa presença. Os impressionantes efeitos especiais buscam no horror dos destroços não o medo da morte, mas o temor de nunca ter como seguir em frente, por trabalhar tanto para reconstruir, sem amparo de seu próprio país, sendo lançado à própria sorte contra uma aberração que vem de uma força natural potencializada pela ação humana. É essa mistura que faz Godzilla não apenas um ser que Shikishima precisa vencer por vingança, mas um inimigo em comum da população que só quer ver alguma perspectiva para viver. A lógica kamikaze perde o sentido, então, se dá como algo que vem dos grandes poderes egoístas, não há mais a questão da covardia contra a coragem, pois ninguém mais deveria morrer para que outros sobrevivam.
A esperança que surge, muito nesse emocional melodramático das relações ao redor de Shikishima, de encontrar horizontes para continuar vivendo, dá significado para toda a ação magistralmente arquitetada em Godzilla Minus One amarrando seu propósito, tecendo suas críticas mais políticas, mas acima de tudo, entregando um acontecimento que apenas o cinema poderia produzir. Uma porrada que une medos, empatia, admiração, fascínio, desespero e angústia, tantas emoções que batem de frente com as imagens de um monstro que se assemelha ao núcleo da terra, parte intrínseca do nosso mundo, fadada a nunca deixar de existir, mas suficientemente derrotada para que o povo Japonês possa, ao menos momentaneamente, seguir em frente.
Nota da crítica:
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