Tuca Siqueira desmistifica a figura de Iracema por meio das histórias potentes das mulheres cearenses, que apesar das dificuldades enfrentadas, tomaram controle de suas narrativas
Uma figura que representa o imaginário de Iracema caminha por Fortaleza e cruza o caminho de outras mulheres, a maioria mais maduras, Tuca Siqueira apresenta suas personagens como se esse fantasma as acompanhasse. A ideia de Iracema é como uma entidade no Ceará, com seu nome estampado a cada esquina, e, dessa forma, a diretora busca compreender quem são verdadeiramente as mulheres que ali nasceram e vivem, de diferentes descendências, mas com jornadas similarmente atravessadas por problemáticas que acompanham seus gêneros. A maior força de Iracemas está justamente nessas entrevistadas e suas histórias, que Tuca filma sem participar ativamente frente às lentes, mas se faz perceptível a intimidade criada com cada uma delas, a qual permite uma interação tão genuína. Por vezes a câmera fica estática e não existem cortes por vários minutos, quando uma delas relata uma passagem de vida, basta aquele momento em que essa mulher desabafa para nós para manter o magnetismo do filme, tudo sustentado pelo poder de suas palavras honestamente derramadas. Tuca pretende não somente ouvir suas dores, mas ir além disso, compreender quem realmente são, do que são feitas e quais são seus sonhos, desejos, o que as fazem tão únicas quanto uma protagonista de um livro.
Todas as narrativas carregam ao menos um ponto em comum, como os homens mudaram seus caminhos e se tornaram capítulos a serem superados. Seja por violências vividas, abandonos ou casamentos, desejados mas também fundados pelas pressões sociais, todas elas viveram no passado algum encontro com uma figura masculina que, de alguma forma, se apoderou de suas narrativas por algum tempo. A moça que engravidou ainda adolescente e foi julgada pela família do pai da criança, sofreu violência de um médico e lidou com as consequências disso para toda vida, a mulher que casou pela religião e levou anos para compreender o quanto era limitada por tudo aquilo, traumas por estupros, abandonos, agressões ou os preconceitos enfrentados e uma casa construída juntos que perde o significado na separação. O que também as une é como cada uma dessas histórias carrega a emancipação delas, que ressignificou suas jornadas. Todas se libertaram, encontraram outras formas de viver, outros trabalhos, desejos e ambições, mas acima de tudo, se tornaram protagonistas e diretoras de suas narrativas.
É um trabalho muito simples e sutil, de filmar o que surge nessas conversas de forma bastante livre, permitir que elas escolham o que vem na mente e precisa ser dito, muitas vezes sem editar, deixando minutos inteiros de seus relatos, sempre se valendo dessa força de que algo muito autêntico está sendo partilhado, mas ordenando tudo para que se completem num mesmo significado. A profundidade se dá na costura de histórias e no observar íntimo, de abrir espaço para que manifestem suas formas de se expressar, suas artes, trabalhos e casas, mas também olhando para o passado em imagens guardadas, que nos permitem compreender cada tijolo da fundação dessas mulheres. Assim, observando as particularidades de suas personagens, Tuca constrói um novo imaginário de Iracema, da força da mulher cearense, independente, feliz apesar das dificuldades passadas, mas que escreve sua própria história.
Essa crítica faz parte da cobertura do FIM – Festival Internacional de Mulheres no Cinema, 3ª edição
Nota da crítica:
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