Em uma proposta fundamentada na perspectiva, RaMell Ross foca na sensibilidade de uma história entre ficção, realidade, memória e vivência
O cinema é capaz de apresentar à pessoa espectadora novas formas de enxergar o mundo, olhar a vida por outras perspectivas e conhecer vivências distantes. Clichê de se dizer, mas também poético, combina com a proposta que RaMell Ross encontra para ficcionalizar uma história quase documental (baseada no livro de Colson Whitehead), que é mais do que se aprofundar no vergonhoso passado da Flórida, “encerrado” nem tão longe assim do presente, mas transformar a posição passiva de quem assiste em um convite a vestir a pele, os olhos e sapatos dos personagens que também se misturam em suas perspectivas e se enxergam a partir delas. Conhecer o mundo pela câmera subjetiva que compreende a visão de Elwood (Ethan Herisse), passa por etapas como um renascimento dentro do filme, de acordar neste corpo e, primeiramente, ver o universo ao redor, suas belezas e figuras de conforto, para aos poucos compreender-se nessa pele, o que sua cor representa neste meio, como ser essa pessoa muda as vivências e dinâmicas, como esta pessoa é enxergada pelos outros. Veja, não é que assistir à obra fará que alguém sinta verdadeiramente a experiência como se fosse sua, mas é uma conexão sensível ao ato dos próprios personagens se conhecendo e reconhecendo. Poderia ser um didatismo raso contra o preconceito, mas sua condução gentil está mais para uma experiência empática que, ao mesmo tempo, trabalha a denúncia central de Nickel Boys. Essa visão subjetiva passa a se ressignificar uma vez que Elwood chega ao reformatório e, fascinantemente, tem seu olhar alternado ao de Turner (Brandon Wilson), permitindo que o plano e contraplano possa ser executado, que ambos possam ser enxergados a partir do momento em que a perspectiva é dividida entre os dois jovens. Torna-se uma surpresa ver o rosto de Elwood, mesmo que este já tenha sido revelado em fotografias e reflexos, como ver algo pela primeira vez, se movendo do corpo atribuído pela câmera. Esse recurso e impacto é repetido ao final, quando Ross mais uma vez se vale dessa sensação ao revelar uma inversão em seus personagens, algo costurado durante todo o filme e que, mais uma vez, agrega novos valores à proposta.
O maior mérito do filme, a forma de contar sua história, é também uma grande dificuldade, que emprega tanta proximidade quanto distanciamento. Sustentar o ponto de vista subjetivo por mais de duas horas, dentro da cadência mais desacelerada de Nickel Boys, que procura observar tudo com calma, contemplar e absorver os cenários e acontecimentos, e junto de um trabalho de som que, para facilitar essa imersão da pessoa espectadora na posição do personagem, torna vozes e sons abafados, é um desafio. Assim, trazer pela alternância entre Elwood e Turner a possibilidade de acrescentar o plano e contraplano, observar as vivências em suas diferenças e semelhanças, trazendo não apenas a chance de enxergar o mundo como Elwood, mas também de o compreender por meio do outro, a posição tradicional de quem assiste, porém potencializada pela proximidade dos jovens, facilita que a dinâmica mantenha o interesse, ainda que exista no meio da narrativa um marasmo, atingido quando o desenvolvimento parece perder o fôlego, recuperado mais à frente. Nos saltos temporais, Ross provoca ao mudar novamente como opera o ponto de vista, quem assiste perde o lugar de primeira pessoa, passa a tentar desvendar, enquanto o caráter documental do longa fica mais forte. Elwood e Turner são tão diferentes quanto se completam, e o ato de um observar o outro, com um público todo no meio, faz com que cada personagem veja a si mesmo. Enquanto isso, a história dos Estados Unidos acontece com as jornadas desses meninos refletida em suas imagens, mas invisível aos outros.
Atribuir importância ao tema parte então da visão, a pessoa espectadora testemunha os acontecimentos em uma mutação do olho em lente, da relação construída entre os personagens, o ponto de vista permite que os conheça empaticamente, pelo olhar do outro, e da conexão além do filme com a realidade, a abordagem não-ficcional insere elementos de denúncia ao que verdadeiramente se passou na Flórida entre 1900 e 2011, sem necessitar de telas com textos. E, para que esta obra seja mais do que um casamento entre documentário e ficção, sobra sensibilidade ao lidar com as técnicas e elementos, um cuidado com os personagens que praticamente pede licença e permissão para contar suas histórias, que não pretende de forma alguma dizer que é possível entender suas dores e experiências por como a observação é proposta, mas as torna mais próximas de se enxergar e sentir. Mais potente do que ler, ouvir dizer, ver alguém contar algo, é testemunhar, ser transportado para dentro, e Ross vai além de usar o cinema como essa ferramenta simplesmente pela ilustração em tela, mas aproveita suas possibilidades para realmente extrair ao máximo da experiência entre quem assiste e o que é mostrado. É quase como se não existisse Turner sem Elwood, fundamentalmente pela função do olhar nessa relação, e factualmente pela alternância em seus papeis, tornando a pessoa espectadora tão testemunha dessa doce simbiose quanto dos horrores impregnados em sua memória.
Nota da crítica:
3.5/5
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