Com atmosfera de horror, Marco Bellocchio explora a perda de identidade por meio da lavagem cerebral da religião, em confronto direto com a igreja católica
Com o título original Rapito, o filme de Marco Bellocchio passou sem grandes aclamações por Cannes em 2023 e chega muito tempo depois aos cinemas brasileiros com um título um tanto duvidoso. Aos mais desavisados que encontrarem ingressos à venda para assistir a O Sequestro do Papa, talvez pareça que se trata de uma trama em que o líder da igreja católica é a vítima, o oposto do que o longa que aborda um caso real do século XIX procura fazer. Bellocchio estabelece-se dentro do horror desde o início da obra, pela atmosfera obscura da época e o desamparo das pessoas ali atingidas, a família de judeus recebe pela noite sem aviso um grupo de homens que querem levar um de seus filhos, a criança pequena que se esconde na saia da mãe enquanto os abdutores negociam sua remoção, e pelos olhos brilhantes e assustados do menino, as cenas se assemelham a um grupo de vampiros prontos para roubarem sua vida. Mas, mais do que isso, Bellocchio se concentra nas crenças que estão em cada ponta desse cabo de guerra e em como elas definem os seres dentro de sua narrativa mais do que suas próprias personalidades. O suposto batismo secreto faz de Edgardo Mortara um cristão católico, pouco importa que com apenas 6 anos de idade tudo que ele precisa é de uma família, um lar e cuidados, sua alma é automaticamente computada como pertencente a essa igreja e somente no caso da conversão de seus pais seria possível permitir a criação do menino novamente em sua casa. A partir disso, o filme observa a dualidade das crenças colocando os personagens como quase papagaios treinados que apenas decoram e repetem palavras, de forma que a identidade individual é dissolvida e a crença é obtida por meio da lavagem cerebral.
Obviamente que aqui ocorre uma vilania bastante simplista em que a igreja católica é a maior fonte do mal, e o pequeno garoto indefeso é absorvido pelos horrores dessa doutrinação. No entanto, O Sequestro do Papa observa as crenças da mesma maneira no que diz respeito a esse debate acerca da religião como definidora de quem se é. Importa mais dentro dessa lógica a que deus cada um responde, do que seu próprio ser. É, portanto, doloroso aos pais o afastamento do filho, mas a revolta vem realmente quando vê o garoto usando uma cruz, que rejeita sua identidade como hebreu, da mesma forma, Edgardo tenta se manter fiel à sua pessoa e suas origens por seguir as rezas antes de dormir, não existe identidade ou laço afetivo que não passe obrigatoriamente pela fé. Assim, os símbolos e ícones se tornam recursos fundamentais do horror, em que Bellocchio faz bom uso dos efeitos visuais para criar ambientações e dar vida a elementos fantasiosos. Desde a chegada de Edgardo na igreja católica, por exemplo, já lhe é apresentada a culpa tão comum desta religião, ao dizer que o Jesus exibido morto na cruz foi colocado naquele estado pelos judeus. Neste conflito interno do pequeno personagem, o longa dá vida ao ícone, seja criando textura em como enquadra sempre sua presença como um fantasma ao redor do menino, ou literalmente usando os efeitos para o movimentar e remover da crucificação. Então, todas as questões ocorrem dentro da criança, mas todas são puramente fundamentadas nas religiões. A pergunta de quem é Edgardo só existe em dois campos, judeu ou cristão e enquanto acredita que ser obediente é a melhor forma de retornar a sua família, o menino é lentamente abduzido para o sistema de crenças imposto, decorando e repetindo palavras que possivelmente nem compreende.
O menino é, portanto, a crise humana em forma física, sem compreender quem é e no que acredita por si mesmo. Pouco importa à igreja a verdade de suas crenças, mas a contabilização dele como um fiel, um corpo a mais, um número, uma mente roubada e lavada para fazer coro em suas missas. Usando Edgardo como objeto de conquista entre judeus e católicos, Bellocchio apaga identidades e se foca no melodrama o suficiente para que seu protagonista vazio de sentido seja amável e a observação da perda dessa doçura inocente da infância, sequestrada pela igreja vampiresca, seja sentida com o peso do tempo. Mais do que uma pessoa, o Papa e o que ele representa aqui, roubam uma vida, e o retorno ao leito de morte da mãe não encontra satisfação, pois o jovem que volta não é mais judeu e, sem sua fé compatível, não é mais o filho amado. Da mesma forma, sua única forma de se expressar é, novamente, pela crença decorada e repetida, em uma representação assustadora desse Edgardo de olhos fundos, sem alma.
O terror soturno que ronda os corredores e os ícones filmados ou construídos nas imagens vai cobrindo a trama de um pessimismo dilacerante pela perda. Por isso, Bellocchio rompe abruptamente com o retrato da criança doce e o transforma em um adolescente perturbado, é a dura pontuação de que Edgardo não retornará nunca mais, o menino judeu é praticamente tido como morto, substituído pelo zumbi criado pela igreja católica. Assim, o filme explora profundamente o que é vazio, as almas sequestradas pela fé e os corpos ocos que funcionam como discos reproduzindo discursos, usando o horror para dar um contorno mais afiado ao embate de Bellocchio com seu vilão.
Filme assistido a convite da Pandora Filmes e Sinny Comunicação
O Sequestro do Papa chega aos cinemas brasileiros no dia 18 de Julho de 2024
Nota da crítica:
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