Marcos Jorge regride seu próprio trabalho ao tentar manter a mesma estrutura, reduzir seu antigo protagonista e trazer referências pobremente trabalhadas
Embora Estômago sempre tenha sido um filme muito querido da minha cinefilia, nunca imaginei ver uma sequência dele. Acredito que esse sentimento seja partilhado por muitos que foram pegos de surpresa quando as notícias sobre Estômago 2: O Poderoso Chef começaram a chegar. 17 anos depois de assistirmos a Raimundo Nonato desembarcar de um ônibus para contar sua história de paixão que o levou do zero à beliche mais alta da cadeia, o homem permanece encarcerado e cozinhando, mas tanto seu tesão quanto sua personalidade parecem ter ficado no papel. João Miguel, que tanto fortaleceu a persona inocente porém sagaz de Alecrim, um homem que usava suas habilidades para conquistar caminhos e manipular pessoas, que era um personagem misterioso, sem origem e de passado incerto e, ao mesmo tempo, doce, passional e divertido, se vê agora obrigado a servir uma piada sobre si mesmo. Nonato torna-se um alívio cômico enfiado como justificativa à sequência, no meio de uma história que pouco é sobre ele. Não existem regras que atestem que um filme deve manter os mesmos personagens quando faz um novo capítulo, portanto é no mínimo curioso tentar compreender o que a mente de Marcos Jorge pensou ao escrever essa participação. Mais do que isso, quem conhece o longa de 2007 talvez se espante ao saber que o mesmo cineasta que costurava com sofisticação suas tramas paralelas de passado e presente, exaltava a comida como objeto de paixão e tesão e construía uma narrativa interessante entre personagens cheios de desejos, hoje faz um filme em que suas principais referências - além de si mesmo - são piadas de péssimo gosto que usam Ratatouille e O Poderoso Chefão como base.
Enquanto a Itália ganha espaço no longa, Jorge faz um filme de máfia que, ainda que seja uma comédia, parece não perceber o quanto é uma piada sobre si mesmo, ou pelo menos não tem coragem de se assumir dessa forma. De usar as frases mais batidas até as piores encenações que tentam aludir ao filme mais famoso sobre o crime organizado italiano, Estômago 2 faz tudo com um novo protagonista, Caroglio (Nicola Siri), que é agora o homem “misterioso” com narrativas entrelaçadas para contar sua chegada até a prisão e sua história que também tem amor e comida, mas não chega nem perto do que conhecemos antes. A estrutura de Estômago se mantém, é quase como se Jorge quisesse fazer uma sátira ou paródia de seu filme, mas pelo que vemos no resultado geral, não parece exatamente intencional. Se Nonato era complexo por sua humanidade, não uma pessoa boa ou ruim simplesmente, Caroglio e Etecetera (Paulo Miklos) dividem boa parte do tempo de tela sendo puramente caricaturas de criminosos comuns, um italiano e o outro brasileiro, forçando sotaques, palavrões e atitudes esperadas de uma esquete de humor. No meio de tudo isso fica Alecrim como uma desculpa esquisita para ligar as coisas, mesmo que o mafioso claramente não precise do cozinheiro já que ele mesmo é um chef de verdade. Tudo sobre o antigo protagonista parece colocado à força em algum desespero de justificar sua existência, mas o mais triste é o ver reduzido a motivo de riso, pontuando seus erros na fala, lhe permitindo somente cenas com textos cômicos e removendo seu desejo, seja de viver, de sexo ou pela comida. Como ele fica esquecido e não o acompanhamos tanto, até sua escolha de ficar do lado da máfia soa como qualquer coisa aleatória, não há simpatia construída entre personagens que sirva de base, nem a habilidade que sempre o levava aos lugares lhe é útil realmente nesse cenário, nem vantagens verdadeiramente apresentadas. Sua participação se limita a um alívio cômico terrivelmente escrito que poderia muito bem nem estar no longa.
Sobra então espaço para a história enfadonha de Caroglio, que é apresentada de forma confusa, como muitas coisas são em Estômago 2. Nem a montagem nem a narrativa conseguem situar muito bem onde se passam certos acontecimentos, principalmente porque constantemente se dedicam em pedaços que ficam soltos por aí. Todo passado como ator do mafioso, por exemplo, é encenado como se fosse de grande importância, mas é descartado e pouco importa ao personagem. A figura que vemos na prisão é imponente e tecnicamente poderosa, mas é só aos 45 do segundo tempo que talvez o longa se aproxime de explicar como um homem comum, até meio covarde, virou esse chefão. Perde-se muito tempo em desenvolvimentos fracos para referências pobres dessa caricatura italiana e do romance capenga que serve para se igualar ao protagonizado no passado pela brilhante Fabiula Nascimento. Nada tem o mesmo tesão, paixão, nem a capacidade de se estabelecer além da paródia mal feita. É só lembrar da cena absurda em que Nonato transa com a trabalhadora da prisão enquanto ela come macarrão, uma cópia barata do que existia em Estômago, mas agora filmada e apresentada sem nenhuma emoção, sem nenhum desejo. Nem vou gastar muito tempo falando da atuação lamentável de Projota e das referências a Ratatouille em cenas que, novamente, parecem piadas, mas são inseridas com seriedade no contexto para tentar colocar alguma água no feijão da relação da obra com os alimentos.
Marcos Jorge conseguiu regredir em seu próprio trabalho. É espantoso pensar que o mesmo homem foi responsável por ambos filmes, já que esse tipo de resultado seria de se esperar de uma sequência em que o cineasta original abandona o barco e a direção fica a cargo de algum contratado pouco inspirado. Mas parece que a motivação é a mesma, Estômago 2: O Poderoso Chef é uma desculpa puramente comercial que vem ao mundo não almejando ser um bom trabalho que consequentemente faz bilheteria, mas somente focado em ser um produto vendável. Certamente não foi com o mesmo tesão de fazer cinema que Jorge se levantou todos os dias para filmar esse prato de fast food que se degusta enquanto assiste televisão.
Filme assistido a convite da Paris Filmes
Estômago 2: O Poderoso Chef chega aos cinemas brasileiros no dia 29 de Agosto de 2024
Nota da crítica:
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