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Foto do escritorRaissa Ferreira

Ferrari (2023) | Mostra SP

Muito além da biografia, Michael Mann faz um retrato sobre a brutalidade de uma paixão que pulsa nos roncos dos motores e caminha sempre para a tragédia



Em tempos de tantos filmes sobre marcas, empresas e grandes figuras, o cinema tem se saturado de fórmulas prontas para contar histórias sem inspiração ou aquelas que vendem mais pelo nome, com algumas poucas peças que se salvam. Nessa estrada, um nome como Michael Mann sempre levanta ótimas suspeitas, e Ferrari é a prova de que o fascínio do diretor pelas mentes, desejos, pulsões de morte e complexidades de homens que vivem no limite, pode transformar até mesmo uma corrida de carros em algo religioso. É em como filma cada detalhe desde os primeiros planos que o diretor expõe uma paixão que será condutora de toda sua narrativa, não somente a que Enzo (Adam Driver) sente por seus carros, mas toda a paixão que move esse homem por dentro. Sua figura é construída em todas suas canalhices, mas principalmente, as traça como meras consequências dessa vida que só corre conforme seus próprios desejos, aceitando cada tragédia que vem atrelada. Da forma como Enzo muda as marchas, até o gesto quase erótico de manusear o cronômetro, o que move o fundador da Ferrari não são as mulheres que tanto dizem que ele vai atrás, mas o ronco dos motores e, principalmente, a ideia de vencer. Assim, em tudo aqui, Mann busca relacionar desejo e dor, paixão e morte, vida e drama, para observar um pequeno recorte de uma vida nada glamurosa, em toda a brutalidade que ela pode carregar.


A sequência que melhor resume toda essência de Ferrari está logo no começo, quando o filme faz um paralelo entre a missa na igreja e um teste de corrida cronometrado. Mann retrata esse ritual como algo sagrado, elevado ao divino, mas também com erotismo, colocando todos esses homens em uma montagem acelerada, numa crescente de tensão e obsessão, entre o som latejante do motor e os ruídos silenciosos e abençoados do culto. O carro vermelho, o melhor tempo a ser batido, o relógio na mão de cada homem, tudo perfeitamente encenado para transmitir uma paixão que não vê céu nem inferno, tudo que existe é a estrada na frente e a melhor performance a ser atingida. Nem com Laura (Penélope Cruz), nem com Lina (Shailene Woodley), vemos Enzo ser tão passional fisicamente quanto quando está arquitetando suas corridas. Ainda assim, Ferrari é um homem que se move por desejos e, por isso, toda a encenação respira um drama bastante trágico (e bem italiano), da esposa intensa brilhantemente vivida por Cruz, até a forma como por onde esse homem anda, um rastro de destruição parece ficar. São personagens bastante quebrados emocionalmente, com cargas densas, mas o condutor leva cada batida como mais uma curva, segue em frente movido por sua paixão, cobrindo corpos no caminho.


Ainda que exista esse papel bastante triste da esposa traída e negligenciada, Laura é uma personagem tão forte e intensa quanto Enzo, passional, movida também por seus próprios desejos mas arrebentada pela perda. O longa nunca a coloca numa posição de pena pelo adultério, a dá o controle muitas vezes, mas sempre nos lembra que a tragédia é o centro da narrativa, e assim, não poderia haver uma vida sem dor para essa mulher. É como se houvesse um ar de maldição ao redor dessas pessoas, sempre as levando ao abismo. Mann não quer só olhar para o que existe no limite entre paixão e morte, quer destrinchar cada elemento dramático na nossa frente, mergulhar no que transforma um ato tão mecânico em algo puramente vivo e emocional. O som é seu melhor amigo, muitas vezes, e o barulho dos carros não apenas preenche a tela e a sala, como trepida tudo ao redor, criando uma imersão que faz filme e corpo pulsarem juntos com esse desejo de Enzo. Sempre trabalhando nos limites, como, por exemplo, do áudio que cria tanta tensão e medo quanto excitação, Ferrari usa também os segundos a seu favor para pontuar essas linhas finas que transformam tudo. O tempo parece parar, cronometrado, e o que é pura euforia muda em um milésimo para a sequência mais sangrenta e brutal possível.


A escolha do recorte de vida de Enzo é pertinente na criação desse personagem que o caráter pouco importa, na verdade, portanto vem a calhar que seja um obstáculo qualquer na pista, uma peça deixada pelo destino, que deixa um rastro de sangue onde o homem realizou seu desejo de competir e vencer. A tragédia o segue seja como for, não há remorsos ou culpabilização, Ferrari não quer ser uma propaganda, nem um registro histórico, muito menos o retrato de uma figura importante que existiu, é uma obra sobre brutalidade e paixão, a mesma que Enzo sente pelo motor, Mann parece sentir pelo cinema e os complexos personagens que pretende nos apresentar.



 

Nota da crítica:

4/5




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