A partir da história particular de seu protagonista, Claudia Marschal permite que seu depoimento dite os rumos do longa, excluindo qualquer fator externo
Os horrores da igreja católica em escândalos de abuso sexual são antigos conhecidos do mundo, não importa de que lugar você seja, e constantemente colocados em panos quentes. Emmanuel, um homem que vive em uma pequena cidade da França, decide quase 30 anos depois relatar um trauma passado que nunca foi lidado com a devida importância por seus pais e o resultado não é diferente do esperado. Portanto, o que Claudia Marschal faz em seu documentário é abrir espaço para que esse homem lide com sua jornada particular, fazendo a denúncia por si mesmo e, embora seja um acontecimento que afeta tantas outras crianças no mundo, seu foco é apenas em Emmanuel e seu depoimento, sua vida individual e os desdobramentos que se ligam ao fatídico abuso que sofreu aos 13 anos. Assim, diversas vezes as imagens são neutras, propondo que o espectador medite nelas para se concentrar nas palavras que está escutando. Os relatos que reconstroem o ocorrido não servem para visualizar ou construir imagens para assim compreender o trauma do homem, mas abrem a escuta ativa para seus desabafos. Da mesma forma, sempre que Emmanuel confronta seu pai, figura essencial nessa jornada, as cenas se dedicam a construir praticamente um antagonismo entre ambos, com cada um em uma ponta da tela, geralmente debatendo o passado. A denúncia feita no presente parece também mais uma forma desse homem lidar com questões não resolvidas com o pai e isso torna ainda mais pessoal a observação do filme, cada vez mais concentrada em um universo pequeno e individual, ainda que a direção pertença a outra pessoa que não o próprio protagonista.
É comum que documentários que utilizam um personagem tão marcante para dividir sua história acabem emprestando o ponto de vista de forma que o diretor desapareça e se torne apenas um nome nos créditos. Ainda que seu trabalho esteja lá, acaba se tornando invisível pela condução tão marcada do protagonista. O que é um pouco menos comum é um documentário não colocar a jornada que observa em contexto com o mundo e usá-la para abordar algo muito maior. É claro que a denúncia de Emmanuel conversa com os incontáveis abusos relatados ou não na igreja católica, mas além dessa ponte óbvia, The Deposition não faz nenhuma questão de ampliar sua visão ou a colocar no centro de um debate mais abrangente. Claudia Marschal mantém seu cerco fechado apenas na pequena igreja da cidade, na violência que Emmanuel sofreu e o padre responsável pelo crime. Os rostos que vemos são poucos, do pai, da irmã e de antigas fotografias, o restante são vozes inseridas por cima de paisagens neutras. A vida do homem além disso é também pouco abordada, o foco é total no que está ao redor da denúncia, como a relação com o pai se complicou, a fuga para outro país, a sexualidade que Emmanuel acaba ligando sempre ao ocorrido por acreditar que será sempre contestado por ela, o que provavelmente é verdade, mas não se discute além de suas falas soltas.
O que soa como algum acolhimento nas primeiras ligações que ouvimos entre o homem e as pessoas que ouvirão seu depoimento na igreja, se fecha como mais uma história que não dá em nada. Depois de tantos anos e sem outras denúncias, é a palavra de Emmanuel contra a do padre, que continua exercendo suas atividades no mesmo local normalmente. Embora seja pouco retratada sua reação a isso, o que vemos ao longo de todo filme é um homem muito rancoroso e raivoso, não necessariamente com o abuso passado e seu abusador, mas com o pai. É só depois de muitos duelos visuais que os dois parecem superar essa rusga, em que o velho senhor até se apresenta bem disposto a apoiar o filho, mas o homem é constantemente reativo com ele. Nas cenas finais, ambos estão lado a lado e irritados com a mesma coisa, parece que The Deposition é menos sobre pedofilia na igreja católica e a importância de denunciar esses crimes e mais sobre a reconciliação de Emmanuel com seu pai, quando finalmente se colocam juntos contra um inimigo em comum. Na verdade, é essa jornada muito particular desse homem em superar esses traumas e ser capaz de perdoar o pai e se colocar ao seu lado, mas, em todo caso, é algo tão pessoal dele e retratado assim, sem muita partilha, que só assistir passivamente não se faz grande coisa.
Nota da crítica:
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