O cinema praticamente autobiográfico de Hong Sang-soo encontra na proposta de Na Água o expressar emocional imagético suportado pela valorização do que é dito
Todo mundo que já viu alguns filmes de Hong Sang-soo já se deparou com a reflexão de como nossas vidas, cotidianos, experiências, pessoas que amamos ou apenas as que passam em nossos caminhos, todos são elementos que formam as obras de um artista. O diretor que produz mais de um filme por ano costuma economizar nas durações, ser breve e simples em suas narrativas, principalmente nos últimos anos, e é quase certo que a maioria deles terá um diretor de cinema como personagem importante. Na Água não é diferente, nesse sentido, porém acredito que a forma como Sang-soo utiliza um singelo drama ao final para amarrar toda sua proposta é algo que não foi tão explorado nos últimos trabalhos quanto foi aqui, ainda mais por sua eficácia, como ele o faz de forma tão bonita. Ao longo de quase todo o filme, confesso que não estava entrando na narrativa, nem me sentido atraída por ela, até finalmente tudo se fazer compreender quase poeticamente.
Em poucos minutos dentro dessa história simples, de três pessoas gravando um curta na praia, a imagem começa a desfocar até que esse miopia forçada se torne permanente e mais forte. A proposta estética talvez até ousada do diretor, se revela algo muito mais bonito quando tudo se amarra. Sempre trabalhando o interior e o exterior, primeiro de forma mais óbvia e concreta, dentro da casa com os três personagens nítidos e focados e depois do lado de fora, nas ruas e na praia com o desfoque removendo seus rostos e expressões faciais, Sang-soo nos afasta emocionalmente do que acontece ali e foca completamente no que é dito entre eles. A falta de foco visual achata as imagens, transformando as linhas que separam as formas em manchas, que parecem conversar com a falta de perspectiva desse diretor dentro da história, que de começo não faz ideia do que vai filmar, sem roteiro, sem planejamento, apenas dois atores e uma câmera. Parece que Sang-soo fala de seu próprio processo criativo, o que pode ser absorvido principalmente por quem já conhece sua filmografia. O personagem não sabe para onde ir e o que criar, só sabe que quer fazer um filme, e começa a unir pedaços de suas memórias e ideias que pega aqui e ali, andando, vendo pessoas, num fluxo muito orgânico e desprendido, parece ser o próprio criador aqui não apenas falando de si, mas também brincando com tudo que é sabido e comentado sobre seu cinema.
Mas o mais interessante realmente é quando esse personagem se abre sobre sua ideia, bem como sobre o que sente, quando a proposta visual do desfoque parece realmente se encaixar em tudo e Na Água se revela um comentário sobre a complexidade humana do criar e do viver, de como o que criamos pode ser nossa forma de desaguar emoções complexas, difíceis de serem expressadas. Assim, Sang-soo usa o desfoque para dissolver as barreiras do interno com o externo, agora emocionalmente falando, misturando seu personagem ao cenário, fundindo seu corpo já quase sem forma na água, valorizando o que é dito por ele, seus sentimentos expressados em palavras - que, graças à legenda nos casos de muitos países, é ainda mais evidenciado pelo contraste da falta de nitidez da imagem, com as palavras bem contornadas à frente - e transformando o que é dito, o desabafo, em uma bela cena de encerramento tão triste quanto encantadora. É algo devastador, mas que revela uma potência da imagem, do texto e do som, juntos para expressar o que o corpo bem definido em sua forma não poderia.
Essa crítica faz parte da cobertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Nota da crítica:
Comments