Maryam Touzani constrói um drama efetivo que encanta e emociona nos detalhes, mas acaba trabalhando negativamente sua proposta ao reprimir e aprisionar seu protagonista
O belo tecido azul petróleo, destacado pelos fios dourados e brilhantes, manejado com tanto carinho em planos muito próximos, são detalhes que pontuam como a cineasta Maryam Touzani pretende olhar para a relação entre Mina (Lubna Azabal) e Halim (Saleh Bakri). O melodrama aqui é muito efetivo ao aproximar gradualmente o espectador desse casamento, que à primeira vista pode parecer um incômodo entre uma mulher amargurada e difícil de lidar e um homem mais sensível que esconde seus verdadeiros desejos. Porém, há outro lado dessa narrativa, que se propõe a explorar a sexualidade de Halim, que é onde Maryam Touzani não tem a mesma sensibilidade que usa na retratação do amor heterossexual. No Brasil, o filme não teve uma tradução oficial, sem distribuição nos cinemas e passando apenas em festivais e mostras, um deles com foco em produções LGBTQIA+, mas lá fora, o longa fez parte da seleção da mostra Um Certo Olhar, em Cannes. É interessante a ideia de uma cineasta marroquina realizar uma obra que aborda essa questão mais sensível, de uma sexualidade proibida num país islâmico, e na mesma medida, é decepcionante ver como ela o faz. Mas, na mesma proporção que há um incômodo em tudo que diz respeito a essa temática envolvendo Halim, há uma beleza encantadora quando estamos intimamente envolvidos com a história de amor entre ele e sua esposa. Embora isso equilibre um pouco o jogo, e a emoção criada pelo melodrama até possa nos fazer esquecer algumas coisas, é importante a reflexão de como as relações LGBTQIA+ são tratadas no cinema, principalmente quando estão maquiadas no meio de tanta beleza que podem fazer problemáticas passarem batidas.
Quando Mina aparece, sua presença é amarga, e por algumas cenas é possível imaginar uma narrativa em que ela seja um grande freio que segura a vida do marido e, em algumas sugestões que o filme dá, ainda espera certos traços de masculinidade dele. Entretanto, isso é transformado aos poucos em uma relação de muita amizade e cumplicidade. É um salto que é dado em duas horas da obra, em que ao final, essa mulher não somente é a pessoa mais doce e agradável do mundo, embora com muita personalidade, é claro, mas também compreende seu marido e o incentiva a encontrar a felicidade. É ótimo que Maryam crie uma protagonista tão complexa e interessante, como mulher no Marrocos, que é uma pessoa forte, intensa, dura, mas também divertida, amorosa e companheira. O problema é que pelo lado da sexualidade escondida de Halim, tudo isso soa bastante problemático. Se nos primeiros minutos de filme pensamos que o homem engana a mulher sistematicamente para ter relações com outros homens, Mina se mostra conhecedora e compreensiva com a situação e o pior de tudo é que a diretora a faz dar permissão a Halim para viver sua vida como quer. Esse homem não tem poder de decidir seu destino por si, precisa que a parceira de um casamento aceito socialmente o diga o que fazer.
Isso é só um dos detalhes dos incômodos causados nessa temática, visualmente ainda há muito mais. Halim é reprimido pelo longa o tempo todo, embora Maryam incite constantemente um desejo, aproximando outros corpos, dando closes nas peles descobertas e em olhares de interesse e, sempre volte diversas vezes a essas “escapadas” de Halim, ela nunca dá a ele nenhuma liberdade de consumar seu desejo em tela. Veja, até poderíamos pensar que a sociedade reprime esse homem de sentir o que sente por outros homens e, dessa forma, seus encontros seriam todos escondidos de qualquer forma, porém, o filme usa uma abordagem que dá espaço para um desenvolvimento maior do que é dado. O Kaftan Azul não só não mostra nada, como parece reforçar preconceitos ao jamais deixar nenhum toque com conotação sexual, por menor que seja, ocorrer sem que haja um corte, uma porta, algo que interrompa nossa visão, da mesma forma que impede Halim de realizar os atos. A diretora não tem o mesmo problema em mostrar os seios de Mina ou seu contato sexual bastante incômodo com o marido. Dessa forma, é quase uma tortura observar como Halim fica numa prisão de tristeza por duas horas, e o filme acaba o reprimindo tanto quanto ele mesmo e o mundo já fazem, só podendo ser feliz após o consentimento e morte da esposa. Mas isso, não veremos, pois o filme se encerra.
Atravessando tudo isso, como os fios dourados costurados no tecido azul, existe uma relação linda entre o casal, que mais na frente se torna uma amizade entre eles e o aprendiz do ofício de Halim, Youssef (Ayoub Messioui). Quando o filme olha para esses momentos e para a gradual deterioração de Mina pelo câncer, o drama não é apenas efetivo como excelente. Parece que as cenas até brilham quando vemos os dois, ou os três eventualmente, rindo juntos e aproveitando ao máximo o pouco de companhia que ainda terão. Maryam Touzani sabe muito bem como nos aproximar desses personagens e valorizar cada detalhe, das mexericas aos cigarros partilhados. Toda a trama que se liga pela criação do Kaftan (ou caftan) é belíssima, com Halim sendo um artista de uma profissão ultrapassada e perdida no tempo, consumida pela modernidade, mas ainda assim preso em costumes antigos que o oprimem. O amor pelos fios e tecidos, assim como por Mina, culminam no desfecho emocionante que provam que a obra sabe manipular muito bem os sentimentos.
É de um encantamento e sensibilidade incríveis, uma pena que esse carinho todo não é dado a Halim e sua sexualidade, fazendo com que O Kaftan Azul deixe um gosto amargo que não dá pra esquecer, mesmo com toda sua beleza.
Nota da crítica:
3/5
Filme assistido como parte da cobertura de imprensa da Mostra de Cinemas Africanos
O Kaftan Azul faz parte da edição de 2023 da Mostra, com programação em São Paulo de 5 a 13 de Setembro e em Salvador de 13 a 18 de Setembro
Confira a programação completa em: https://mostradecinemasafricanos.com/
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