Ryusuke Hamaguchi escancara sua falta de esperança na humanidade com humor acertado, confrontando a força da natureza contra a ganância do homem
Ao abrir O Mal Não Existe com planos alongados e silenciosos, Hamaguchi pretende contemplar a natureza e as pessoas que vivem em harmonia com ela. Além das longas observações do céu, árvores e águas correntes, cada gesto dos habitantes do pequeno vilarejo parece um ritual, tudo feito sem a pressa comum das cidades grandes, com carinho e respeito por cada recurso natural. O ato de cortar a lenha ou de captar a água do rio são filmados como algo quase místico, que o faz tudo Takumi leva a sério, numa preocupação em usar o que precisa, sempre respeitando os recursos naturais. Essa quase introdução, em que o diretor alonga o tempo para que o espectador possa mergulhar nessa atmosfera, é brilhantemente usada como contraste da ameaça que está por vir, quando o filme introduz os mensageiros perdidos de um corporativismo ganancioso e desonesto. O ponto até bem simples que Hamaguchi propõe, desse mundo que foi quase destruído pela pandemia mas que aparentemente não aprendeu nada com isso, é trabalhado na profundidade de como o diretor é capaz de criar um impacto certeiro, bastante por um humor muito bem elaborado, nas ironias desse contraste de interesses e formas de vida, mas também por como a narrativa é capaz de construir quase que silenciosamente um desfecho forte, que sintetiza tudo como um soco no estômago.
Ao introduzir os personagens de fora daquela comunidade, o longa constantemente explora suas falhas e abusos pela comédia. Ocorre que, ainda que os funcionários sejam meio para tudo de ruim que vem ameaçar o equilíbrio local, Hamaguchi nunca esquece que eles também são apenas peças, trabalhadores feitos para sofrerem as consequências de decisões que nunca serão tomadas por eles. Assim, os representantes vindos de Tokyo são afetados pelo vilarejo, suas vidas e costumes, que os fazem questionar seus papéis nesse jogo, mas, tudo isso acontece por meio de uma ridicularização bem divertida. Quanto mais próximo ao mal do capitalismo o personagem está, mais idiota parece, mais absurdas as situações se tornam. Enquanto isso, em Mizubiki tudo segue como o rio, cada peça em seu lugar, até que a influência do homem se prove mais uma vez, o maior mal do mundo.
Tanto quanto é impossível não se desesperar com as destruições na natureza que aquela empresa promete realizar em troca de lucro, é também fácil pensar em diversos exemplos exatamente iguais na vida real. O acerto do humor de Hamaguchi é muito por essa identificação, do uso do absurdo que já acontece, explorando o lado da ignorância desonesta dessas pessoas para as tornarem caricaturas da realidade. Se aproveitando das longas reflexões em diálogos, como de costume no trabalho do cineasta, o filme explora a profundidade de sua mensagem, enquanto toda ironia nos diverte como uma distração para a conclusão de suas ideias. É que Hamaguchi perdeu a fé na humanidade, mas ainda consegue rir disso, só que não é pelo humor que ele pretende deixar o impacto final de seu longa. O mal, que bem existe, vem da influência humana na natureza, ela que só revida quando é atacada - e não poderia haver metáfora mais pontual para essa reflexão pós-pandêmica - mas quando se defende, pode ser cruel.
A natureza tão contemplativa e pacífica que abre O Mal Não Existe se ressignifica, enquanto havia o equilíbrio, tão citado por Takumi, a comunhão entre os humanos e aquele meio era funcional, mas quando tudo é ameaçado, vem a resposta. O tom se fecha para algo sombrio, e essa força implacável dá o troco, com uma porrada que se faz entender muito bem.
Essa crítica faz parte da cobertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Nota da crítica:
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