O microcosmo feminino de Mika Gustafson se vale da força coletiva para sobreviver perante o abandono em um sistema individualista falido, com uma juventude pulsante em formação
O ditado em língua inglesa que mais gosto diz, em uma tradução livre, que é preciso todo um vilarejo para criar uma criança. No capitalismo de hoje essa ideia está um tanto diluída pela diferença absurda de classes e poder aquisitivo, mas também pela individualidade imposta por esse sistema que busca separar e colocar a responsabilidade nas costas de cada indivíduo. Se uma pessoa tem dinheiro o suficiente, seu vilarejo será uma rede de apoio comprada em esquema de patrão e trabalhador, mas quando pensamos em pessoas com menos condições - ou as que optam por estilos de vida alternativos - essa vila se torna bastante real, ideologicamente ou apenas pela necessidade de sobreviver. É geralmente pela miséria, abandono, falta de tempo ou pela luta diária para sustentar a família que essa coletividade vem, imposta ou por alguma sorte da vida, para dar o suporte necessário na criação de algumas crianças. Quem cresceu em qualquer lógica em que o dinheiro é escasso esteve nessa realidade ou conviveu com pequenas pessoas que, por vezes, viviam quase independentes na falta de qualquer adulto para as cuidarem. É nessa ideia bastante comum e quase universal que Mika Gustafson leva sua narrativa, porém observando um sistema de abandono e negligência bem grave e que foca completamente no poder feminino. Se são as mulheres que maternam, desde que o mundo é mundo está imposto a elas o papel de cuidadoras, e quando uma delas falha, é geralmente outra que assume seu lugar, como nessa escadinha de Paraíso em Chamas, também bastante comum na realidade, em que filhas mais velhas criam as irmãs ou irmãos menores e assim por diante.
Ainda que o realismo seja bastante presente, é interessante como a diretora Sueca constrói sua história inicialmente como um mundo bonito, ainda que muito triste pelo abandono, em que essas três irmãs se viram como podem e partilham muito amor e carinho umas pelas outras. Nesse belo trabalho das três atrizes e de Gustafson que as guia, o interesse maior está nelas e nesse microcosmo feminino que também se mostra forte na união das garotas com as outras da mesma vizinhança. Nesse coletivo, elas partilham ritos de passagem de seus amadurecimentos, travessuras comuns à juventude e ensinamentos, que formam uma rede de apoio para cada uma delas, um lugar de pertencimento formado por suas iguais, quase como uma extensão do vilarejo comandado pela irmã mais velha Laura (Bianca Delbravo). A partir disso, a ligação da assistente social que ameaça separar esse paraíso em que é difícil sobreviver, mas em que a união é mais importante que qualquer perrengue - e também a única forma de seguirem em frente - começa a ser desconstruído. A presença dos adultos aqui não vem de encontro a uma ideia de acolhimento e cuidado, mas sempre como algo que interfere negativamente em suas vidas e relações.
A câmera de Gustafson busca sempre valorizar a força dessas meninas e suas personalidades, não é que o longa romantize a situação precária em que uma garota de 7 anos (Safira Mossberg) precisa ajudar as irmãs a roubarem comida para poder se alimentar, mas ele busca olhar com honestidade para essa realidade também sempre exaltando o feminino. A consciência de que os homens existem nesse universo se faz presente, mas eles não importam, nem mesmo os maridos tem poder de alterar algo, o da gerente da habitação em que vivem que ainda é mais presente na narrativa ou o da mulher mais velha com quem Laura se envolve para buscar seu próprio espaço de amadurecimento longe da responsabilidade familiar recebida tão cedo, ambos peças irrelevantes no destino das irmãs. Se tivesse alguém capaz de as ajudar, ao menos fingindo ser sua mãe para despistar o serviço social, só poderia ser uma mulher, mas a regra aqui é que só elas mesmas podem se ajudar.
É um grande acerto da diretora buscar a imersão nesse universo, desconstruindo a felicidade apesar dos pesares para algo tristemente mais realista, sem se deixar cair no drama final do que está por vir, numa possível separação das meninas. A vida será dura com elas não importa o que aconteça e é muito potente como ela foca até o fim em suas relações de amor, cuidado e exemplo, deixando o cruel destino de fora para que a imagem final permaneça em nosso imaginário como algo construído no afeto mais do que na dor.
Essa crítica faz parte da cobertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Nota da crítica:
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