Para falar de aceitação e incomunicabilidade, Carolina Markowicz mantém um distanciamento de seus personagens, sem se aprofundar em suas propostas
Carvão (2022) é tido como o primeiro longa de Markowicz, mas caso eu mesma não tivesse acompanhado ambos lançamentos, diria que Pedágio foi um projeto anterior, com toda a cara de primeiro filme, de quem ainda não encontrou sua voz. É verdade que existem semelhanças aqui, a frieza e o distanciamento fazem parte de Carvão também, porém se encaixam como uma luva na proposta, até o humor do absurdo, que é a alma do primeiro longa, faz todo sentido ali, e em Pedágio fica completamente avulso. É complexo comparar, mas também é inevitável quando temos um filme que chama tanta atenção logo de cara, seguido apenas um ano depois por outra obra bastante esperada, comentada fora do Brasil e esperada demais em sua verdadeira casa. A reflexão sobre as semelhanças no estilo da diretora, em ambos, também cabe quando é possível notar onde ele funciona e onde deixa a desejar, como se um filme fosse a experimentação desse território e o outro uma operação mais ciente de seus elementos e características, exceto pelo fato de que tudo parece fora de ordem quando notamos os anos de lançamento de cada um. Em Pedágio, Markowicz resolve abordar um tema sensível nesse país ainda dilacerado por políticas conservadoras, mas não novo em nosso cinema. A terapia de conversão não é exatamente o centro aqui, mas o que motiva a protagonista e a narrativa. O problema está em como todo o afastamento cruza uma linha de desinteresse por seus personagens, e torna todos os debates um tanto superficiais, em uma obra que parece não ter unidade, hora se levando a sério nas relações humanas, hora fazendo uma sátira com humor pastelão e fora de tom.
Suellen (Maeve Jinkings) é o retrato de uma mulher trabalhadora que precisa batalhar para sobreviver, portanto tudo em sua vida precisa ser resolvido de forma prática, não existe uma romantização de sua condição, nem mesmo como mãe solo, o próprio filho também trabalha e precisa resolver suas coisas sozinho. É um mundo de cada um por si, e Suellen não tem tempo para lidar emocionalmente com o quanto Tiquinho (Kauan Alvarenga) é diferente dela, e do que ela considera aceitável socialmente. Não chegassem a ela reclamações e piadas sobre o comportamento do menino, talvez as coisas fossem diferentes, mas como seu estilo de vida parece não se encaixar, ela se sente no dever de resolver isso como qualquer problema, seja buscando na fé ou terceirizando o trabalho, porém nunca sentando para conversar. Esses pontos são os mais interessantes, porque esses personagens se amam da forma que conseguem, mas são incapazes de se comunicarem abertamente, tanto Tiquinho não procura a mãe dessa forma, quanto ela não se esforça para compreender as atitudes do filho. Ainda que a atuação do menino seja bastante truncada, há um encaixe nessa proposta distante e fria.
O problema é que existem diversas ideias aqui, tanto de estética quanto de tom, que parecem perdidas e não passam da superfície. A terapia de conversão mesmo vai para um caminho do absurdo com um humor muito fraco que se baseia basicamente num homem que parece um coach / guru espiritual mostrando genitálias o tempo todo, beirando uma esquete que não condiz com o restante da obra, falta bastante para que essa crítica engraçadinha sirva a seu propósito. Da mesma forma, o mundo de lentes cor de rosa de Tiquinho é pouco explorado na estética, parecendo jogado a momentos aleatórios que não fazem muito sentido. Por sorte existem alguns personagens bastante autênticos aqui que seguram bem a onda seja na seriedade ou no humor, como a colega de pedágio ou o namorado de Tiquinho, ambos que possuem ótimos momentos com os dois personagens principais, onde a maior força do longa, se pautar na aceitação e incomunicabilidade, funciona muito bem. É bizarro imaginar que essa mulher tão prática e cheia de problemas leva a sério o discurso da assistente da terapia de conversão, que novamente poderia ser um vídeo do porta dos fundos perdido nesse filme sem querer. Fica um desencontro, de quem quer tanto buscar um absurdo para expor algo que realmente já é absurdo, mas força num humor capenga.
A brincadeira com a hipocrisia dessas pessoas que buscam a fé por não saberem muito bem com quem contar e como lidar com suas próprias questões, também tem ótimos momentos. Da colega que tem um tesão incontrolável e busca justificativa na religião para aliviar sua culpa, até Suellen que mesmo se envolvendo em crimes terríveis, vê fundamento em suas atitudes por precisar de dinheiro para pagar o curso do filho, para que ele seja do jeito que ela compreende ser o mais correto. Mas toda parte do pastor/guru é bem fraca, sendo seu melhor momento quando ele morre, numa lógica de causa e consequência que força a mãe a aceitar seu destino.
Suellen não tem pra onde correr, mesmo que não queira saber como seu filho se sente, e seja impossível para ele se abrir com ela, mesmo quando finalmente a procura para tal, essa vida dura muitas vezes obriga as pessoas a engolirem o que não querem. Mas, Pedágio exige muito esforço do espectador para se importar com tudo isso e se relacionar com essas questões, os bons momentos são bem interessantes, mas sofrem com uma falta de unidade que amarre essa proposta em algo sólido.
Essa crítica faz parte da cobertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Nota da crítica:
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