A majestosa nostalgia construída por Nara Normande e Tião faz de Sem Coração um bonito retrato sobre o amadurecimento e o amor aos lugares que nos formam

As primeiras cenas do longa já fazem questão de mostrar uma relação de muito carinho com todo aquele ecossistema de Maceió, um dos momentos mais marcantes já acontece nos primeiros minutos com sem coração (Eduarda Samara), ou Duda, encarando de frente, dentro do mar, um dos seres que lá habitam. Nesse lugar em que os adolescentes passam seus dias na praia, ou invadindo casas vazias para beber, comer e assistir televisão, existe uma sensação de que tudo caminha para uma transição, as últimas férias de verão antes da vida adulta começar a bater na porta, as últimas vezes que aquele grupo de amigos terá a chance de viver aqueles momentos juntos. Situado visualmente nos anos 90, e especificado uma vez no contexto histórico para não dar margem à dúvidas, a nostalgia é clara, existe uma ligação pessoal desses criadores com a ambientação de sua obra, é possível sentir o amor por cada canto, cada detalhe, do sol constante que aquece confortavelmente os personagens até cada brincadeira na água. Essa pequena janela de tempo que observamos antes de Tamara (Maya de Vicq) se mudar para Brasília para trilhar seu caminho até a faculdade é não apenas um retrato sobre o amadurecimento, o famoso coming of age, mas também de muito pertencimento, de amor pelo lugar que forma aqueles jovens como pessoas, suas origens definitivas, que não importa para que lugares eles possam se mudar, sempre terá um espaço cimentado em suas mentes e em suas almas. É também um olhar para as diferenças de classes que não busca um pesar, mas o compreender a realidade, de que para alguns a praia distante de Guaxuma é começo e memória afetiva, para outros é um lugar de toda a vida.
Fica claro e é bem destacado pelo filme que Tamara e seu irmão são uma classe média com mais condições, pela casa e objetos que possuem, num contraste direto com Duda, que precisa trabalhar nas entregas dos peixes para a vizinhança local enquanto todos os outros jovens se divertem. Aos poucos esse abismo fica mais profundo, na diferença das casas e de perspectiva de futuro, não importa para onde a narrativa caminhe, é sempre essa diferença de classes que nunca deixa de ser marcada. Ela também está presente entre os amigos de Tamara, esse grupinho que sempre anda junto e em que um deles acaba de voltar da febem (que hoje já não se chama mais assim), mas que cada um sofre preconceito pela vizinhança mais endinheirada. Não é apenas a classe, mas é também a cor da pele que pesa, Tamara e seu irmão fazem as mesmas coisas que os amigos, mas na hora de escolher quem é culpado, os brancos com mais condições financeiras são facilmente livrados, enquanto o restante é tratado como criminoso. Não há uma intenção dos diretores de pesar a narrativa nesse sentido, como já mencionado, mesmo nas maiores tragédias existe uma lente de tristeza sutil, balanceada pelo humor das crianças, que parece atestar aquilo tudo como memória de um passado distante, parte importante da vida mas inalterável, que nenhuma grande dramatização seria capaz de mudar.
Mas é também a união desse grupo que transforma tudo em carinho, a amizade é um lugar de acolhimento e não de julgamentos, os diferentes convivem em harmonia perfeita nessa pequena bolha. Da mesma forma, há esse belo retrato das sexualidades sendo descobertas e exploradas, tanto por Tamara, a protagonista, como por seu amigo, e nesse ponto temos mais uma vez as diferenças sociais e de raça sendo fundamentais no desenvolvimento das questões. Como tudo na vida, ser branco e rico pode tornar esse processo mais fácil, e enquanto o amigo apanha e é constantemente hostilizado por ser gay, Tamara mesmo que ainda na fase de entender como se sente, tem o privilégio de não viver - ao menos nesses momentos iniciais - na pele os mesmos preconceitos. O interesse por sem coração é gradualmente construído como um romance de verão bem juvenil, muito doce nos detalhes que observam essas meninas em suas diferenças e em como elas se atraem uma à outra, tal qual Duda observa a grande raia no fundo do mar. É um acerto do filme como focam suas lentes nesses jovens e deixam os adultos quase de lado, equilibrando a atenção entre cada um dos adolescentes, mantendo a personagem título como algo não apenas místico dessa praia, mas também peça fundamental da obra.
É importante destacar também como o filme retrata essa relação de todos os humanos com a natureza que os cerca. Cada animal é como um ser majestoso aqui, dentro do mar ou na areia da praia, os diretores voltam sua mise-en-scène para os valorizar, estabelecendo uma relação de respeito dos moradores e pescadores com os animais. O mar é de onde muitos tiram seu sustento e de onde todos tiram seus alimentos, seja literalmente na pesca ou comprando dos trabalhadores. Mas essa vida está em total comunhão, tirando com gentileza o que se precisa, tratando cada ser como algo importante, e mesmo a baleia que encalha na areia é aproveitada com cuidado. São nesses momentos que o capitalismo tão marcado nas diferenças entre os personagens parece se dissolver um pouco, como se não houvesse ainda uma exploração exagerada dos recursos naturais naquele pequeno universo mágico, mas a realidade sempre bate quando o pai de Duda nos lembra como sua profissão poderia limitar o futuro da filha, ou pela diferença entre os ricos clientes turistas que compram seus peixes.
Para Tamara, Maceió é a casa que fica guardada com amor no peito e na memória, lugar de formação, de pertencimento eterno, mas para Duda o mar parece ser o lar de toda vida, que provavelmente não será deixado para trás. A diferença é marcada pelo que cada uma sente, sim, mas também pela falta de opção que as separa, pelas distintas formas que cada uma consegue trilhar suas estradas. O que não falta no longa de Nara Normande e Tião é coração, de muito amor por esse lugar, suas pessoas e memórias, até as mais tristes, atestando o poder do cinema em transformar nossas experiências em uma arte sincera, cheia de emoção e identificação.
Essa crítica faz parte da cobertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Nota da crítica:
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