Longa da diretora burkinabé Apolline Traoré denuncia a violência do terrorismo islâmico, principalmente com as mulheres, sem economizar no sofrimento das personagens

Sira foi meu primeiro filme de Burkina Faso, mais uma grande descoberta graças à Mostra de Cinemas Africanos, além disso, o filme conta com uma mulher na direção. Não é que a força feminina seja novidade no cinema dos países africanos, seja exaltando suas presenças históricas nas narrativas, ou jogando luz nas opressões que sofrem. Em Sira, os dois pontos existem, já que Apolline Traoré faz uma obra política, acima de tudo, retratando problemáticas que acontecem atualmente na região do Sahel e o funcionamento violento do estado Islâmico. Para tal, a diretora burkinabé escolhe o caminho de destrinchar o sofrimento de sua protagonista, a usando como instrumento não apenas de denúncia, mas também de observação do funcionamento desses grupos e como eles atacam mulheres de diversas regiões. Com pinceladas de melodrama para nos aproximar da história daquelas pessoas, o filme individualiza o tema, concentrando seus esforços na jornada de Sira (Nafissatou Cissé) e dividindo um pouco o fardo com as demais mulheres que são inseridas em certo ponto. Por vezes, Sira acaba pesando a mão na tortura dessas personagens, tornando a experiência muito sofrida, mas é compreensível que Traoré tenha optado pelo choque das imagens para criar alguma conscientização, é um recurso bastante comum, afinal. Entre esse calvário, e narrativas paralelas que nem sempre funcionam bem no conjunto, a obra é efetiva como peça política, principalmente por ser o olhar de uma mulher africana sobre os acontecimentos, e carrega a urgência de retratar conflitos que se agravam nos últimos anos, podendo usar o cinema como janela para o mundo entender a gravidade da situação de milhares de pessoas que lá vivem.
Os momentos felizes e de tranquilidade que permeiam os primeiros minutos de Sira são os únicos respiros que o espectador terá, mas já começam a mostrar como a protagonista é uma mulher forte e destemida. A virada de tom ocorre rapidamente, quando somos jogados num choque de realidade, de terroristas que matam homens a troco de nada, abandonam as mulheres no deserto e sequestram outras. Nesse momento, a câmera de Traoré, que já olhava para a imensidão de areia aqui e ali, começa a realmente construir a dimensão desse deserto que fica ao sul do Saara. A jovem violentada e abandonada à própria sorte é apequenada na grandeza da natureza, em grandes planos abertos, com a areia sempre muito destacada. São, afinal, questões climáticas que agravam as crises na região. Portanto, a diretora sempre coloca o humano em embate com esse meio natural, que é tanto transformado pelas mãos dos homens, quanto causa problemas a eles em consequência. Assim, Sira sobrevive quase como um animal nesse lugar, com pouca vegetação restante para se abrigar, usando as pedras como refúgio e precisando aprender a caçar, sobreviver e encontrar alimento e água. É sempre essa lógica de presa e predador que rege as relações, com o grande vilão, Yere (Lazare Minoungou) sendo a ameaça maior.

Para denunciar as violências que as mulheres sofrem nas mãos dos terroristas, Traoré foca nas torturas, desde o estupro inicial que Sira sofre, passando por longos meses que a mulher fica vivendo de forma desumana no deserto, até as observações bastante dolorosas do que os corpos das outras mulheres sofrem, principalmente Kemi (Ruth Werner). É uma longa jornada, que dura a gravidez toda de Sira, de fome, sede, condições terríveis de sobrevivência, e quase nenhum contato com outras pessoas. É exaustivo emocionalmente acompanhar essa tragédia, ao ponto que em dado momento, a vingança dela nem parece tão crucial quando comparada à necessidade que ela, e as outras mulheres, consigam sair dali vivas e de preferência, sem sofrerem mais uma violência sexual. Ao mesmo tempo em que o longa quer mostrar essa força feminina, de resistir a tudo isso e ainda querer lutar, coloca essas personagens num lugar de muita fragilidade que passa para fora da tela, como se, se mais um homem tocasse nelas com intenções agressivas, iríamos juntas desabar de vez.
Felizmente, a diretora faz questão de mostrar Yere, e outros homens, despedaçados, com a pele derretendo pela explosão, no calor das areias. Mas seu sofrimento dura minutos, muito menos do que aquelas mulheres são obrigadas a passar. Se a intenção de Traoré com Sira era realmente causar esse grande desconforto e tristeza para que sua obra fosse efetiva politicamente, há realmente essa força de uma peça histórica, que tem um papel social importante. Mas, ainda parece que seria possível dar mais força a essas mulheres, sem as torturar tanto em tela.
Nota da crítica:
3/5
Filme assistido como parte da cobertura de imprensa da Mostra de Cinemas Africanos
Sira faz parte da edição de 2023 da Mostra, com programação em São Paulo de 5 a 13 de Setembro e em Salvador de 13 a 18 de Setembro
Confira a programação completa em: https://mostradecinemasafricanos.com/
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