Visions du Réel 2025 | Since I Was Born
- Raissa Ferreira
- 25 de abr.
- 4 min de leitura
Jawad Rhalib acompanha a resistência, contra as tradições e os acasos, de uma infância com o futuro determinado pelo gênero
Em qualquer parte do mundo, nascer mulher carrega algumas sinas, mas em determinados lugares, o destino pode ser ainda mais cruel. Para Zahira, uma menina de 13 anos que nasceu em um pequeno vilarejo no Marrocos, seu gênero significa que ela terá que lutar mil vezes mais para tentar ter o direito de estudar e, tendo isso decidido, sua história poderá seguir ou um caminho distinto, ou a tradição local. Jawad Rhalib visita a escola, a casa e a vizinhança de Zahira para filmar, muitas vezes na altura de seus olhos de criança, uma sociedade parada no tempo, com direitos femininos estagnados. A professora do ensino fundamental de Al Haouz, na região da cordilheira do Alto Atlas, dá a eles o máximo de educação que será garantida à maioria das crianças ali. Ao chegar ao ensino médio, meninos serão levados à cidade para trabalhar e meninas ficarão em casa para ajudar os mais velhos e serem formadas como esposas e mães até encontrarem um marido. Apenas uma pequena parcela poderá seguir com os estudos, a maioria, homens.
Pela localização do vilarejo de Zahira, a maioria dos pais não permite que suas filhas continuem na escola, pois o único lugar em que podem cursar o ensino médio, e depois a faculdade, é na cidade, que fica a muitas horas de suas casas. Para chegarem nas escolas no começo da semana, os estudantes registrados precisam sair de casa de madrugada no domingo, retornando aos sábados só pela noite. Somando-se isso aos custos de transporte, materiais e afins, a maioria dos adultos nem tenta e, os poucos que tentam, matriculam seus filhos homens e deixam as meninas em casa. São raros os pais no local que lutam para que suas filhas tenham essa mesma oportunidade de estudo, e muitos desistem no processo, pelas longas viagens.
Embora Since I Was Born tenha apenas pouco mais de uma hora, Rhalib se torna um tanto repetitivo no esforço de destacar a opressão no destino de Zahira, que pouco fala, mais faz observar tudo com grandes olhos preocupados, esperando que seu pai escute seus desejos. As cenas em que homens do local se juntam para falar as mesmas frases sobre como a menina deveria ficar em casa e ajudar, que essa é a tradição, que ela deve morar com a família até arrumar um marido e coisas do tipo, se empilham. Da mesma forma, a escola e a professora repetem questionamentos sobre os direitos de mulheres continuarem estudando e os motivos de alguns meninos conseguirem ir para o ensino médio.
A importância dessas pautas, assustadoramente urgentes em 2025, é ressaltada por essa intenção do que os personagens falam, uma seleção que prioriza as cenas repetindo os mesmos discursos. É terrível que ainda hoje filmes abordando questões como essa sejam necessários para que uma parcela do mundo veja o que acontece em lugares isolados assim, mas a abordagem aqui é um tanto cansativa para qualquer pessoa espectadora acostumada a um cinema mais diverso e que explora causas sociais.
Rhalib vê muito valor no silêncio de Zahira, em como ela enxerga o mundo ao seu redor discutindo seu destino sem a consultar. Os momentos em que homens falam sobre ela e seu rosto parece dizer muito, mesmo que ela saiba que não pode responder, são mais interessantes e menos aproveitados que a lógica cíclica das frases opressivas. No entanto, Since I Was Born faz bom uso de sua protagonista para contar a história de tantas crianças e, ainda assim, é capaz de construir muito carinho, dentro de sua distância do registro, pela figura individual de Zahira.
Enquanto o pai decide apoiar o sonho da filha e ela é pressionada a fazer todo o esforço valer a pena, o clima do documentário parece caminhar em direção a uma mesmice. Em dado momento Zahira se torna irmã mais velha e, a chegada do bebê da madrasta se torna um problema, pois sua ajuda em casa é mais requisitada. Quase não há esperanças, entre o pai dando seus jeitos para Zahira estudar e uma incerteza se isso de fato vai se concretizar. Porém, quando finalmente tudo está encaminhado para dar certo, o filme é invadido pelo acaso, pela cruel ação do destino.
Um terremoto de impacto mortal leva a vida de mais de 3 mil pessoas, transforma em pó dezenas de milhares de casas e machuca milhares de habitantes. Zahira observa em choque tudo ao seu redor desmoronar, junto de tantas crianças que têm seus futuros decididos imediatamente, interrompidos por algo inexplicável. Os últimos minutos de Since I Was Born são angustiantes, pelo impacto de uma ação da natureza que invade a narrativa e por como, de alguma forma, a resiliência de Zahira consegue ser tão forte quanto a dos milhares de vilarejos que tentam retomar suas vidas somados. O futuro começa longe, em uma porta de escola do ensino médio, enquanto as ruínas são reconstruídas em casa.
Esse texto faz parte da cobertura do Visions du Réel 2025 - Festival Internacional de Cinema de Nyon
Nota da crítica:
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