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Foto do escritorRaissa Ferreira

Visions du Réel | Apple Cider Vinegar (2024)

Partindo de uma premissa trivial, Sofie Benoot aproveita o potencial de sua narradora para criar uma observação quase alienígena sobre as imagens, o mundo, e suas pedras


Apple Cider Vinegar

Assistir filmes de festivais internacionais muitas vezes significa encontrar obras que não apenas não se encaixam totalmente no conhecimento que a cultura do meu país abrange, como também algumas que eu provavelmente nunca mais verei ou ouvirei falar. Quando a narração começa se apresentando como uma voz que o público provavelmente já conhece, percebo imediatamente que eu não faço parte da estimativa pensada em sua concepção. Não sei se outros brasileiros tem uma intimidade com a voz de Sian Phillips que eu desconheço, mas para mim ela não era nem um pouco familiar. O tipo de material que ela diz ser bastante ligada, observações da natureza e de animais, geralmente chega até aqui apenas em canais de assinatura e meu contato com esse tipo de programa sempre foi por meio da dublagem, tão característica na televisão brasileira. Mas, o fascinante é que Sian não é a diretora deste filme, que parece ser tanto sobre ela quanto pautado em sua presença, é Sofie Benoot que assina o documentário e aproveita todo potencial dessa voz e de sua experiência para estabelecer sua proposta.


Mesclando cenas de câmeras ao vivo em diversos pontos do mundo, atrelando isso a um passatempo da narradora, com viagens que buscam compreender melhor o papel das pedras na construção e existência do mundo, Apple Cider Vinegar parte de uma premissa trivial, uma pedra no rim, para investigar um assunto que beira o marasmo para muitos, mas parece extremamente interessante a seus estudiosos. O que realmente sustenta o brilho dessa obra é a relação da narradora com as imagens, e o próprio som de sua voz. Mesmo quando Sian fala diretamente com os personagens em tela, seu áudio é aplicado como uma gravação limpa, feita separadamente. A diretora então estabelece a relação da contadora de histórias com a imagem como uma alienígena desbravando o mundo através de suas pedras. Ao mesmo tempo em que Sian parece saber muito sobre tudo, o som de sua voz parece quase gerado artificialmente, como um robô cheio de conhecimento mas que ainda não conhecia o mundo por esses olhos. Isso também ocorre porque a câmera se porta como um dispositivo meramente mecânico, sem um humano por trás. Quando a água ferve, a narradora precisa avisar a mulher em cena, sempre que algo ocorre é preciso chamar alguém com braços para resolver, o dispositivo por si só não é capaz de fazer outra coisa além de filmar, se mover aqui e ali buscando o que precisa ser retratado, aguardar o leão aparecer para beber água e focar nele, exatamente como as câmeras ao vivo que a voz tanto assiste.


É uma dinâmica interessante que se monta em uma história que até tem seus pontos mais chamativos, como os peixes fossilizados nas pedreiras palestinas, as críticas sociais de quem seleciona as pedras e quem as usa ou o fato de tantas pessoas viverem sobre rochas em movimento que constantemente geram terremotos. No entanto, em geral, é um marasmo que toma conta, da ausência de trilha sonora, com imagens puramente carregadas pelo potencial da narração extraterrestre. Sian é a maior interessada em tudo, e mesmo nessa dinâmica proposta pelo filme, em que ela nunca parece humanamente dentro das cenas, mas interage com todos, se torna de alguma forma a alma do documentário. Afinal, é sua própria pedra no rim que gerou tudo isso, e suas reflexões geram momentos preciosos, como a espera recompensadora pelos leões, que se traduz em cenas com um gato atravessando a linha do trem, um homem vestido de Darth Vader aparecendo do nada e até mesmo uma leoa, realmente, bebendo água. O poder da imagem se faz presente, mas não apenas ele puramente, como o poder que elas possuem de nos prender e surpreender, do quanto vale ser paciente, deixar o marasmo tomar conta da tela para que algo ali mostrado possa te recompensar e, no final, até a música chega. 


Sofie Benoot faz um filme sobre a paciência de desbravar a imagem, da relação externa que se constrói com o que se vê exibido. Não é brilhante, mas certamente um desafio aos tempos atuais, com ferramentas interessantes utilizadas para sustentar tudo.



 

Nota da crítica:

3/5


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