Partindo de um recorte regional, Sérgio Guidoux traça um panorama completo da história do cultivo de alimentos, atravessada pela política e organização coletiva
Quando pensamos no tamanho do Brasil e cada região, contar uma história sobre o cultivo de alimentos, agricultores e agrotóxicos, provavelmente demandaria uma série de filmes até se aprofundar em cada particularidade, movimento e problemas envolvidos. Mãos à Terra parte então do que conhece e está perto de seus realizadores, a região sul do país, iniciando seu panorama na chegada da soja e com ela, diversas empresas gigantes e interesses financeiros que influenciaram e modificaram para sempre a relação dos agricultores com a terra. É nesse mesmo lugar que nascem os questionamentos e as movimentações contrárias, grupos que buscam alternativas e lutam por direitos trabalhistas, pagamentos justos, reconhecimento e equidade de gênero no campo e uma preservação da natureza e da saúde na região. Quem hoje vive em grandes cidades e conhece uma ou outra feira de orgânicos pode achar estranho pensar que em Porto Alegre isso já existe desde 1989 e é se aprofundando nessa história que Sérgio Guidoux é capaz de traçar um panorama bastante completo, dentro de seu recorte estabelecido, que se fortalece mesmo com o formato documental mais rígido, pela riqueza informativa e de seu material.
Mãos à Terra tem um propósito educativo bastante claro, mas a proximidade e intimidade de seus realizadores com as pessoas que fazem parte dessa história, torna cada aprendizado bastante enriquecedor e garante uma troca empática com seus personagens que faz o espectador compreender que o maior prejudicado de tudo que está sendo relatado ali é ele mesmo. É uma construção gradual, que vem lá das primeiras intenções de nomes que hoje conhecemos tão bem, como a Monsanto, para chegar aos dias de hoje, com descartes absurdos de alimentos pela relação de custo, que vem até o consumidor em grandes mercados por preços alarmantes. Quem vive no Brasil e faz compras já está desesperado há uns bons anos com o aumento dos gastos com comida, e é um impacto e tanto, ainda que já se compreenda o cenário, observar quem cultiva esses alimentos relatar a realidade obscura que o sistema capitalista criou para algo básico à nossa sobrevivência.
Captando desde conversas com agricultores que mostram suas transições do veneno à terra viva, passando por todos os movimentos políticos e sociais que se pautam na união da população para criar uma alimentação segura e mais acessível, Mãos à Terra conta uma história das muitas que se tem no Brasil, de um projeto cruel que começa seu extermínio nos trabalhadores mais pobres e se reflete no prato de comida de cada pessoa, mas opta sempre por dar a solução, o otimismo na organização que luta contra, nos resultados de quem vai na contramão e hoje recupera sua relação com a natureza e com os animais. É justamente do cinema que essas lutas precisam, como arma de conscientização educativa, como ferramenta de impacto, algo simples, direto, mas bastante completo e trabalhado com sinceridade para falar diretamente com o espectador, que precisa ser provocado e se questionar. E esse embate funciona à medida que as respostas já são fornecidas pelo próprio longa, existem sim alternativas que dão certo, mas são sufocadas por interesses maiores, é aquele tipo de filme que te faz sair da exibição pensando em mudar suas escolhas, pensar em como encontrar alternativas em sua própria realidade, buscar, pesquisar, conhecer.
Esse texto faz parte da cobertura do Visions du Réel - Festival Internacional de Cinema de Nyon 2024
Nota da crítica:
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