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Visions du Réel | My Memory Is Full of Ghosts (2024)

Revisitando as ruínas da Síria, Anas Zawahri capta em narrações as memórias trágicas de seus habitantes e imagens assombradas por um passado presente


My Memory Is Full of Ghosts

Possivelmente, a única vez em que a câmera exala algum movimento em My Memory Is Full of Ghosts é em seu final, quando o diretor ainda a opera de forma estática, mas Homs, a cidade, se move ao fundo enquanto o carro dirige, partindo. Por pouco mais de uma hora, Anas Zawahri capta imagens quase congeladas de uma cidade que aos poucos dá sinais de vida, são cenas que retratam ruínas, destruição, e um ou outro sinal de que pessoas ainda a habitam. Enquanto a narração fala por cima das imagens, um vazio preenche tudo, um desconforto, e mesmo se não houvesse nenhuma identificação que fosse, grande parte dos espectadores saberia que aquela é uma parte da Síria, um lugar que já foi tão retratado em filmes, principalmente documentários, nos últimos anos. Os prédios destruídos pelas bombas parecem similares e de alguma forma, ativam na memória o reconhecimento daquele lugar. Entre suas observações estáticas, Zawahri passa de ruas mais vazias e com construções em pior estado a avenidas movimentadas, repletas de carros, para elaborar esse panorama de um lugar em transição, permanentemente preso a uma lembrança de um passado nada distante, atrelado a sua história trágica, enquanto os humanos vagam tentando seguir em frente.


A composição de My Memory Is Full of Ghosts é simples, mas forte pelo que capta. Aposta no uso da imagem quase como se fossem fotografias, deixando que o espectador medite em sua observação. Enquanto os narradores mudam, suas imagens passam em um tempo diferente de suas vozes, as bocas não se movem e o som continua. É como passar pelas páginas de um álbum de fotografia enquanto alguém conta uma história, são memórias da guerra, dos bombardeios, de toda uma vida, de dores passadas, traumas, perdas e outras experiências partilhadas por aqueles que vivem em Homs, cidade em que o diretor Palestino morou. Ao estabelecer seu ponto de vista fixo, as fotografias em movimento de  Anas Zawahri parecem lembrar que em meio a uma cidade fantasma ainda existe muita vida, levantando as memórias que constituem os indivíduos, como os tijolos quebrados que sustentam os prédios, destruídos mais ainda de pé, alguns em péssimo estado, mas ainda abrigando moradores. É como um grande reflexo da própria alma da cidade, cheia de fantasmas mas com a vida existindo a cada esquina, crianças brincando, jogando bola, homens cantando, grupos se reunindo. Uma coexistência de vida e morte, uma memória impossível de ser apagada, constantemente puxada por suas lembranças físicas, do que se vê em cada rua.


Essa relação da imagem, das ruínas que se enxergam e tornam a guerra algo sempre presente, é sensivelmente trabalhada no depoimento de um homem cego, e enquanto quem assiste enxerga tudo que ficou de destruição em Homs, o narrador partilha o vazio de apenas conseguir perceber a dimensão da dor de todos pelos sons, choros e vozes, pela atmosfera que sentia, se colocando como o mais forte entre todos por não ter em seus próprios olhos a imagem dolorosa dos estragos, a memória gravada permanentemente, a lembrança visual das bombas. São histórias assim que Anas Zawahri capta pelas vozes enquanto suas fotografias em forma de filme entram nas casas, registram rostos, ruas, comércios, e se tornam testemunhas dos desabafos. A tela se torna meio para dividir imagens fixas nas mentes dessas pessoas, pela ferramenta do som que constrói em nossas cabeças os relatos, essa tela que também auxilia uma mulher a se comunicar com os filhos, enviados para longe desse cenário, ao mesmo tempo que atesta a distância, como se a vida fosse apenas um filme a se ver por elas, impossibilitando o toque e a presença.


A permanência das cenas, fixas, sem grandes movimentações, permite a melhor digestão e compreensão do texto, ao mesmo tempo em que os silêncios e pausas abrem espaço para uma meditação sobre o que está sendo filmado, tudo que cabe na moldura, é um equilíbrio eficaz para o jogo proposto. E, embora a conexão óbvia seja feita, entre fala e imagem, há um elo que se torna cada vez mais distante ao os estabelecer dessa forma, um espaço preenchido melancolicamente por uma tristeza palpável, mas difícil de se aproximar. A vida que existe ali, que carrega as memórias, se mistura a uma ideia fantasmagórica de passado que nunca deixa de estar presente. Ainda há muita dor na Síria e pessoas que tentam seguir em frente, assombradas pelas imagens a cada esquina.



 

Nota da crítica:

3/5


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