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Visions du Réel | Okurimono (2024)

Deixando sua protagonista exercer grande parte da condução, Laurence Lévesque adentra as cicatrizes de Nagasaki em uma história de legados que atravessam gerações


Okurimono

A palavra japonesa “okurimono” se traduz para algo como “um presente”, uma herança deixada para trás, que aqui é tanto o que Noriko encontra entre os pertences de sua falecida mãe, quanto sua generosidade em partilhar sua história com Laurence Lévesque. A diretora norte americana que conheceu a mulher japonesa no Canadá, por meio da família de sua companheira, atua praticamente em colaboração com Noriko, deixando que ela opere a condução a partir de seu olhar, já que Laurence é puramente uma estrangeira e Nagasaki parece ter muita dificuldade em se abrir sobre seu passado. Para muitos, é possível que até que os créditos apareçam ao fim, a impressão que fique é que a própria protagonista foi a diretora do filme, de tanto que a cineasta se coloca nesse lugar bastante humilde, puramente atrás das câmeras. Ela se torna uma parte dos bastidores e se funde à obra enquanto Noriko atua como uma organizadora, literalmente. São muitas as cenas, desde as primeiras exibidas, em que a mulher é vista empacotando coisas, distribuindo objetos em caixas, empilhando e ordenando toda uma vida do passado. É a intimidade e conhecimento dela, mesmo 20 anos depois de partir de seu lugar de origem, e seus laços familiares, que constituem a narrativa. Tanto a partilha dos bens dos pais já falecidos, quanto a jornada através das cartas escondidas da mãe, servem como condutores de uma história sobre o passado de Nagasaki e todas as cicatrizes que sua população carrega. 


É gradual e gentil, tudo leva seu tempo para ser compartilhado. Enquanto Noriko organiza a casa e um corretor adentra esse espaço para identificar as possibilidades de venda, a própria postura do homem passa um respeito total pela história do imóvel e da família, é um dos primeiros encontros de gerações, o homem mais jovem que pouco sabe dos ocorridos, com a filha de uma sobrevivente. É assim que depois de muito silêncio e observação, o espectador descobre onde está e qual fantasma assombra aquela região. As belas montanhas que podem ser vistas das janelas da casa são as mesmas que seguraram os maiores estragos da bomba atômica, aquela que costumeiramente vemos ser falada muito mais com foco em Hiroshima, onde estimam-se o dobro de vidas perdidas. Em Okurimono, a condução delicada de Noriko entra em suas próprias feridas e, por isso, ainda que lide com algo tão doloroso e horroroso na história mundial, carrega mais afeto, empatia e generosidade, do que pesar e sofrimento. Enquanto a trilha sonora deixa os sons naturais ganharem todo espaço, como as cigarras constantemente cantando, as paisagens de Nagasaki preenchem a tela em um retrato poético de algo reconstruído, mas repleto de pessoas feridas internamente.


Nos encontros entre Noriko e outros a palavra hibakusha aparece diversas vezes, tanto que a conclusão natural é que ela remete aos sobreviventes, sem necessitar de uma tradução direta, mas mais do que um termo usado para rotular aqueles que foram afetados pela explosão, é algo que atravessa gerações, filhos, netos e assim por diante ainda são considerados hibakusha de segunda ou terceira geração. A tragédia que parece tão distante ainda é bastante próxima, visto que o filme encontra muitas testemunhas oculares, ainda vivas, que partilham suas memórias. E assim se desenrola uma descoberta sobre a dificuldade dos hibakusha, de se relacionarem e constituírem famílias, por medo de passar os danos da radiação para frente, de seus receios de se identificarem como sobreviventes e rotularem todas as suas gerações que poderiam sofrer preconceitos, é como se todo o povo de Nagasaki estivesse marcado para sempre e muitos preferissem o silêncio e o esquecimento, a lidar com as consequências emocionais de relembrar. A própria mãe de Noriko não dividia nada com os filhos, os centros de pesquisa da cidade carregam poucos dados, e mesmo que sirenes soem e a lembrança da bomba seja viva, Nagasaki ainda tem muita dificuldade em lidar com seu passado.


É muito consciente então como Laurence retrata esse universo que não pertence a ela, não usando sua protagonista como meio, ferramenta, mas o oposto, é a diretora que se coloca à serviço da história de Noriko para que ela partilhe, deixe seu legado e investigue seu passado. É a nostalgia, a saudade e tudo que essa mulher não conhecia ainda que estruturam o filme, suas mãos que organizam, colocam cada caixa no lugar, enquanto a equipe trabalha para captar sua essência, assim, a estrangeira é quase imperceptível, se dissolve humildemente. Nos minutos finais, Noriko diz que gostaria de um dia também deixar algo como seu legado, e ela certamente o fez com Okurimono, não apenas ensinando tanto sobre Nagasaki por meio do cinema, mas construindo um marco bastante pessoal de sua própria herança.



 

Nota da crítica:

3,5/5


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