A tragédia grega misturada às tradições do Senegal fazem o bonito longa de Moussa Sène Absa uma ode à força das mulheres, refletindo sobre a juventude que é o futuro do país
As temáticas femininas não são novidade no trabalho de Moussa Sène Absa, na verdade, Xalé é o terceiro filme de sua trilogia sobre mulheres, que passa por Tableau Ferraille (1997) e Madame Brouette (2002). O longa que fecha essa série foi o escolhido para representar o Senegal no Oscar de 2023, ainda que poucas pessoas pareçam conhecer a obra do diretor, e também foi seu primeiro trabalho com uma equipe totalmente local, sem usar pessoas de outros países como a França, por exemplo. Em Xalé, Moussa Sène Absa traz muito de si mesmo e das tradições do Senegal para criar uma tragédia grega com suas próprias referências. O destino é anunciado, o prenúncio que ocorre na abertura já pontua o tom de todo o longa e como mais importa tudo que ocorre no caminho, em cada passo da jornada de Awa (Nguissaly Barry) e sua força para seguir a cada mudança que lhe foi imposta, do que o terrível homem que atravessou sua vida. As canções também são parte importante dessa construção trágica, que se une à fantasia pelo uso de aparições de grupos de homens e mulheres, sempre trajados com cores iguais, protegendo os personagens ou anunciando seus destinos, da mesma forma que há sempre um homem que conversa diretamente com a câmera e reflete sobre a situação e o futuro do Senegal. É esse olhar para o destino relacionando passado e futuro que parece reger a obra de modo geral, tanto dos personagens - Fatou (Rokhaya Niang) que é fadada a se casar com Atoumane (Ibrahima Mbaye) por um desejo de família, seguindo uma tradição e desencadeando uma série de acontecimentos - como do próprio país que é berço do filme - pela juventude que busca viver na europa, atravessando as águas e colocando suas vidas em risco para deixar o Senegal para trás. Moussa Sène Absa filma e fala sobre o que conhece e vê, fazendo de seu longa um retrato de muito carinho com as pessoas, as cores, as músicas e os lugares, mesmo quando há coisas tão duras acontecendo ao longo de sua história.
A força das mulheres, tão pontuada no filme, mostra uma grande sensibilidade do diretor para abordar dramas que pode até ter observado, mas nunca vivenciou na pele. Awa é apenas uma menina no começo, mas é muito potente a forma como seu rosto sempre preenche a tela, perdendo aos poucos a fragilidade no olhar e se tornando uma mulher mais resistente ao longo dos acontecimentos que mudam sua vida. Apesar de tudo de ruim que a atinge, Moussa Sène Absa jamais coloca suas personagens femininas num lugar de vítimas fragilizadas, há muito afeto que as cerca e muita força interior que transformam os momentos mais aterrorizantes do longa em passagens duras no meio de uma grande narrativa mais gentil. Quando Fatou é agredida pelo marido, são as mulheres que a acolhem, quando Awa é estuprada, toda a família a acolhe. A estrutura da comunidade é muito forte, serve como base para que essas pessoas sigam suas vidas coletivamente, sempre se apoiando. Assim, embora tenha muito de tragédia, Xalé carrega um otimismo de quem acredita nas gerações que vão construir o futuro e, principalmente, que aposta nas comunidades formadas localmente para levar as cidades e o país para frente. Tanto que Adama (Mabeye Diol) tem sua primeira partida para a Europa interrompida para socorrer a irmã, todas suas investidas na mudança de país são um tanto rejeitadas por Awa, e mesmo que ele tenha essa liberdade para ir para onde quiser construir seu futuro, o filme acontece no Senegal e a partir do momento em que ele pega um barco, não o vemos mais.
Os terríveis feitos de Atoumane são criados gradualmente dentro do longa de forma que, ainda que seu destino já esteja selado, sentimos fortemente o alívio de Awa quando sua vingança finalmente acontece. Por já anunciar o acontecimento de início, a narrativa não vai se apegar nessa punição ao longo da história da mulher, e sim em sua força e nas alegrias de sua vida, na relação bonita entre ela e a filha, nos apoios recebidos em sua comunidade e em seu desenvolvimento profissional. É claro que fica o gosto amargo da menina que era tão promissora nos estudos e acabou tendo seu caminho mudado para ser mãe tão jovem, mas Xalé quer mostrar que o destino é como é, e como as mulheres muitas vezes transformam suas tragédias em vidas bonitas. Já, aos covardes que cruzam e mudam as jornadas de algumas delas, o filme traça um desfecho certo, de sangue e sofrimento. É quase como se não fosse a vingança de Awa que punisse Atoumane, mas o próprio destino.
Moussa Sène Absa vê os problemas da sociedade atual e os que o mundo já carrega há tanto tempo, mas os coloca em tela na forma de uma fantasia bonita e musical que exalta a força de todas as mulheres, com muito respeito por suas histórias.
Nota da crítica:
4/5
Filme assistido como parte da cobertura de imprensa da Mostra de Cinemas Africanos
O Kaftan Azul faz parte da edição de 2023 da Mostra, com programação em São Paulo de 5 a 13 de Setembro e em Salvador de 13 a 18 de Setembro
Confira a programação completa em: https://mostradecinemasafricanos.com/
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