Captando o horror nas margens da tela, Glazer observa o funcionamento limpo e organizado de um terror que gela a espinha sem nunca precisar estar no foco direto
Talvez a relação mais simples de se fazer com a apresentação visual e introdutória de Zona de Interesse seja o ideal do sonho da família americana, mas aqui os significados ganham tonalidades muito mais sombrias e complexas, transportando o visual propagandístico da casa do comandante Alemão Rudolf Höss (Christian Friedel) para uma ideia de prosperidade que só existe por conta de um mundo pavoroso, nunca olhado diretamente, mas abordado nas sugestões do além dos muros. A casa sempre limpa, muito nova e muito bem cuidada pela esposa modelo Hedwig (Sandra Hüller), é o grande foco de tudo que acontece no longa, em que a todo tempo o espectador se sente apenas um quadro na parede, observando à distância o funcionamento metódico dessas pessoas, banhadas de luz do sol, cores claras e muito verde. Apesar de Glazer mostrar uma rotina familiar, de casamento, filhos, trabalho e afins, não seria justo dizer que o filme entra na intimidade dos nazistas Höss, pois tudo aqui é claramente uma visão proposital de um sistema, que jamais pretende conhecer realmente esses personagens. Ao trabalhar algo que não foi registrado na vida real, o diretor remonta como uma maquete a ser estudada - e brilhantemente escutada no trabalho de som - o que poderia ter sido a vida ao redor dos horrores de Auschwitz, e de todo o holocausto por assim dizer, não buscando o que há de pior naquelas pessoas por seus pensamentos e crenças mais internos, mas pelo olhar frio à suas formas de viver e conquistar espaço, enquanto somos constantemente lembrados dos gritos, fumaças de corpos queimando, tiros e outros horrores refletidos nessa propaganda de revista da família Alemã perfeita.
Nada sutil nos detalhes, Glazer não quer esconder os pesadelos que os judeus passaram, e a forma como ele remonta essa história, a cada pedaço, tem poder de aterrorizar tanto quanto uma câmera direcionada para uma cena de tortura. Do sangue sendo limpo das botas do comandante em cenários estéreis até todos os gritos ouvidos ao longe, é a união da estranha felicidade vista na casa da família com tudo de ruim que ocorre na margem da tela que gera um crescente desconforto, em pequenas (e grandes) porradas. As pessoas que se movem como engrenagens, podem até soar apenas mais um núcleo normal de pessoas com boas condições financeiras, muitos empregados subjugados e muitos filhos que parecem bonequinhos mecânicos, porém não há intenção de despistar nada, nem esconder a realidade. Pelo contrário, mesmo Hedwig que planta um enorme jardim para florear os muros que dividem sua casa dos sonhos não carrega essa preocupação em não saber o que ocorre do outro lado, não só bem o sabe e compreende, como aprecia a situação, mesmo que isso nunca seja algo extremamente destacado. A ganância estampada nas cenas em que a esposa toca objetos roubados de judeus já presos ou mortos, bem como os diálogos que troca com outras mulheres, deixam claro que não há camadas a propor na personalidade dela, seu desejo é puramente de ter a vida que quer, conquistada em cima da morte de milhões, sem nenhum outro sentimento para balancear. Não há repulsa no que vem das pessoas do outro lado do muro, mas uma certeza de superioridade e de que seu estilo de vida tão querido é um direito dela e de seus iguais.
Não é que Glazer vá para uma vilania óbvia aqui, tudo isso é retratado com a mesma distância (de tom e de planos) que não adentra o íntimo dessas pessoas, é na frieza de Hedwig, seu jeito de se portar, como conversa com seu marido, com as empregadas e como toca cada coisa em sua casa que se elabora uma personagem tão bizarra quanto cruel, mesmo que sempre muito limpa, com pouquíssimos momentos em que perde o tom mais calmo e tão longe de qualquer cena sangrenta. Da mesma forma, tudo que acontece no trabalho de Rudolf é tratado como um emprego realmente, levando conversas absurdas sobre maneiras mais efetivas de matar pessoas em campos de concentração a reuniões estratégicas que poderiam estar debatendo qual é a máquina de pão mais moderna para se produzir mais em menos tempo, não fosse o teor bastante explícito que não esconde a intenção, mas a aborda nas margens do horror, como tudo no longa.
Assim, o impacto de Zona de Interesse vem de uma mise-en-scène controlada para construir no imaginário um terror já bem conhecido na história mundial, observando o funcionamento gélido daqueles que foram engrenagens da morte. Glazer não parece querer perguntar o que eles realmente sentiam, se alguns refletiam ou não, e até quando a mãe de Hedwig é impactada de alguma forma, não se perde tempo nisso, a vida continua, a casa perfeita precisa funcionar, o sonho existe e se mantém enquanto a janela reflete a fumaça dos corpos. É bastante poderoso como o horror funciona sem nunca estar no foco direto, mas mesmo assim, o diretor ainda compreende que o holocausto não pode ser esquecido, mesmo que observado de outras formas tão terríveis quanto as de dentro dos campos, jogando algumas das cenas mais sombrias para seu desfecho. Não importa o quanto se tente limpar a história, ela está permanentemente suja, a casa branca intocada é só aparência, o que sobram são pilhas de sangue e uma escuridão que o cinema tenta tanto reimaginar para que nunca seja esquecido.
Essa crítica faz parte da cobertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Nota da crítica:
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