O pequeno mundo construído por Tatiana Huezo retrata a força e a solidão de crescer mulher em um lugar que ameaça sua própria existência.
Apesar de todo contexto do cartel de drogas que controla o vilarejo que é o centro do filme, A Noite do Fogo (2021) escolhe focar na tentativa de viver das três meninas que ali moram e crescem. No universo do longa esse pequeno espaço rural parece ser tudo que existe, o mundo todo daquelas mulheres e meninas, cercado de inseguranças, ameaças e com poucos homens presentes, fora aqueles que são os verdadeiros perigos do local.
Ana é apenas uma menina, brincando, aprendendo e se descobrindo com suas amigas. Sua mãe, que a princípio pode parecer muito dura, tem a força e o cansaço de quem já lutou demais para sobreviver e proteger sua filha, assim como todas as outras mulheres ali.
Estamos ali com aquelas meninas, tentando não ver os perigos que as rondam constantemente, focando numa fuga inocente de um mundo tão cruel. O longa faz isso, nos mostra um pouco, nos contextualiza do que acontece nesse pequeno mundo, mas parece querer fugir conosco e com aquelas crianças, um pouco como uma mãe faz com suas filhas. Enquanto meninas são roubadas, Ana e suas amigas tentam descobrir alguma vaidade, se unem em uma cumplicidade quase telepática que só pode ser compartilhada quando se vive tão próxima, quando se partilha tanta dificuldade, tanta ânsia de viver. Ao mesmo tempo, as mães tentam a todo custo proteger aquelas meninas e amenizar o que podem dos fatos tão tristes que as ameaçam.
Ao cortar os cabelos com a justificativa dos piolhos, sabemos que a realidade é outra, que a ideia é tirar ao máximo a feminilidade daquelas crianças, escondê-las em uma figura um pouco masculina para protegê-las. O choro e a compaixão trocada entre as meninas é tão forte, tão intenso, porque é a dor de quem ainda é tão jovem para entender, mas já sabe que sua existência implica um risco constante e uma limitação para suas vidas.
Nascer mulher carrega um peso, para algumas mais e outras menos. Dependendo de onde essa menina irá crescer, seu caminho será mais tortuoso e, em alguns lugares, ser mulher é quase uma maldição. Assim, o longa de Tatiana Huezo carrega essa potência feminina das mulheres que tentam viver e sobreviver, uma resistência que é ao mesmo tempo a maior força e a maior fraqueza daquele vilarejo.
Enquanto Ana e suas amigas crescem, a cumplicidade entre elas não se perde, elas seguem se apoiando a cada etapa. A relação com os homens que fazem parte de suas famílias é complicada, o pai de Ana nunca foi presente e não atende suas ligações. Um dos meninos do vilarejo que parece ter interesse nela até tenta se aproximar, mas a garota é resistente, mantém sua distância. Afinal, como confiar em um homem num mundo onde eles representam tudo de ruim que pode acontecer com você?
E é quando sua menstruação chega que sentimos mais um peso, sabemos o que aquele amadurecimento pode significar, a mãe de Ana também sabe e por isso se mostra ainda mais preocupada, talvez até irritada, com a situação. Mas Ana só quer tentar viver uma vida que lhe foi negada desde cedo. Desde criança tendo que esconder quem é, viver discretamente ao lado de suas amigas, fugindo, aprendendo a se refugiar em buracos na terra, a vida daquelas meninas é um retrato triste do que é escapar diariamente do mundo e tentar viver focando nas pequenas coisas, num batom de beterraba ou numa brincadeira de adivinhação.
Muito da força do filme, para mim, está na atuação das meninas, principalmente das que interpretam Ana. O trabalho de entrevistas e buscas da diretora em várias regiões do México e a participação de não-atores ajudou a construir personagens muito reais e um retrato verdadeiro das dificuldades de ser mulher hoje naquele país.
Disponível na Netflix e representante do México no Oscar 2022, A Noite do Fogo é um olhar feminino e íntimo das vidas roubadas de tantas mulheres do mundo real.
Nota da crítica:
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