CPH:DOX 2025 | Agatha's Almanac
- Raissa Ferreira
- 31 de mar.
- 3 min de leitura
O fascínio de Amalie Atkins por Agatha torna seu filme uma exaltação do poder de escolha de uma mulher de 90 anos, permeada pelas particularidades de sua vivência
Agatha's Almanac é um filme singelo sobre uma personagem peculiar e adorável. Filmado em 16mm pela sobrinha, Amalie Atkins, o longa lembra as obras de Agnès Varda por sua fotografia, pela montagem, pela valorização dos pequenos objetos que compõem o universo e personalidade de Agatha e pelas telas coloridas que servem de transição entre algumas cenas. As imagens, pela película, textura e cores, parecem uma memória resgatada do passado, assim como as mensagens deixadas pela mulher na caixa postal da cineasta se assemelham a áudios captados em uma fita de secretária eletrônica, detalhes que valorizam a atmosfera temporal que Atkins busca, ao retratar a vida da tia longe de qualquer modernidade, em perfeita harmonia com seus costumes descolados de uma noção de tempo atual.
A pequena equipe de filmagens formada por mulheres conheceu Agatha por meio dos registros para o documentário por seis anos, embora o resultado final pareça mais um compilado afetuoso elaborado apenas entre tia e sobrinha a cada nova visita. Na verdade, de início não se sabe qual é o vínculo entre Atkins e sua protagonista, que até troca seu nome algumas vezes. A diretora parece alguém fascinada com a rotina e modo de viver da senhora na fazenda, que aproveita a filmagem para a conhecer melhor e adentrar suas histórias de vida. Agatha não é tímida, fala bastante, divide seus métodos. Apesar de ter um apartamento na cidade, ela vive na propriedade rural da família no Canadá, sozinha, plantando em sua horta o que precisa para comer. Sua relação com a terra, sementes e com os alimentos é a base de tudo e o que lhe traz mais alegria.
Ao longo de Agatha's Almanac, Atkins documenta como a tia etiqueta todas as coisas com seus nomes e funções, determinando pela escrita o uso de alguns objetos ou qual torneira não deve ser ligada. A sensação é estar na casa de uma avó, sempre perguntando se a sobrinha quer levar alguma comida, quantas frutas, separando potinhos sistematicamente. Tudo é perfeitamente catalogado na casa de Agatha e sua mente parece funcionar dessa mesma forma, o que a cineasta aproveita, compilando seus relatos. Quando Agatha conta sobre as mortes das irmãs, a câmera não busca um close dramático fácil em seu rosto, mas concentra-se na cadeira vazia no jardim, enquanto a voz da mulher narra os acontecimentos passados. A montagem aproveita pequenos gestos cotidianos para ilustrar as falas que servem como uma preservação da memória dessa senhora de 90 anos. Sozinha, mas não solitária, ela conta os motivos para não ter se casado, os pretendentes que recusou e como busca companhia em amigos e familiares quando precisa. Agatha não é triste, demonstra poder de escolha e muito apreço por sua vida na fazenda, assim, seus relatos servem como uma exaltação de seu empoderamento. Atkins reforça que o mundo da tia é repleto de pessoas por seus diálogos, mas é tão fascinada na personalidade individual dela, que mesmo quando as cenas possuem outras pessoas, as corta do plano, focando em Agatha.
Agatha's Almanac é quase um monólogo, por vezes atravessado por algumas palavras da diretora, mas sempre soa como uma conversa direta em que a outra parte, nesse caso a sobrinha, foi retirada para valorizar ainda mais o que a protagonista tem a dizer. Enquanto mulheres são sempre tão questionadas por suas escolhas na vida, esse documentário escuta com grande admiração o poder de escolha dessa senhora. A sonoridade de sua voz, explicando métodos, como latas de metal ajudam a cultivar legumes e frutas, os motivos de uma casca de melancia estar mais grossa, como plantar e preservar sementes e frutos, ou como se faz pierogi, um prato tradicional polonês que Agatha adora preparar para a família, é fundamental para a atmosfera do longa, funcionando quase como a própria trilha sonora. O ritmo de suas falas chega a ser mais marcante, inclusive.
É uma obra que tem cara de memória afetiva, de recortes e sons, quase fabricando cheiros, da lembrança de alguém que se ama muito. Atkins sabe aproveitar a personagem peculiar e fascinante que escolheu filmar e faz o filme todo transbordar sua essência, fabricado a partir da mente de Agatha e praticamente etiquetado com suas próprias mãos - os créditos finais, então, são primorosos. Assim, Agatha's Almanac torna eterna a história de Agatha, seu jeito de ser e sua vivência independente e descolada do tempo, uma ode a viver a vida que se quer, como bem desejar.
Esse texto faz parte da cobertura do CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2025
Nota da crítica:
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