top of page

CPH:DOX 2025 | Always

Deming Chen faz retrato nostálgico e sensorial sobre a infância, a partir de suas observações de um menino poeta que cresce e se transforma

Always Deming Chen

A diferenciação estética que ocorre em Always vem de uma ruptura clara do que pretende abordar, o rompimento da infância que ocorre quando se amadurece. As imagens em preto e branco, e razão de aspecto 4:3, preenchem boa parte da duração do documentário, representando a vida de Gong Youbin quando criança, em seu pequeno vilarejo na província de Hunan, na República Popular da China. O garoto tem apenas oito anos, mas é impossível identificar em que período do tempo ele está sendo filmado. A fotografia dá essa textura bucólica, que ressalta muito mais o meio em que Youbin está inserido, na natureza entre as montanhas com sua vida rural, do que o contexto da época. Entre a sala de aula em que ele e outras crianças aprendem poesia, os momentos entre as plantas e animais, e a vivência em casa, com a família, Deming Chen faz um retrato nostálgico da infância, o recorte da vida em que enxerga-se o mundo de outra maneira.


Os poemas de Youbin e de outras crianças pintam as cenas, com a escrita em chinês transformando a tela em uma obra de arte, traduzindo no canto os significados literais. É um paralelo entre o sensorial, de ouvir o menino recitar suas escritas, enxergar a paisagem preto e branco da natureza ao fundo dos logogramas, e o racional, das pequenas letras do alfabeto romano que produzem um sentido concreto, menos emocional. Assim, a escrita por símbolos denota significados muito mais sensíveis, ainda que não possam ser lidos por aqueles que não os conhecem, enquanto a tradução pequena, no canto, explica o sentido mais simples de ser compreendido, aquele que pode ser assimilado literalmente pela pessoa espectadora que sabe os ler apenas em inglês. Somente a união dos elementos, da compreensão das palavras e a sensação abstrata do conjunto imagético e sonoro, denotam a beleza dos poemas em sua totalidade.


Na infância, a fase que Youbin partilha com o cineasta em Always, vencedor do prêmio principal do CPH:DOX, os significados mais racionais são provavelmente os menos importantes. Por isso, enquanto seu pai e seus avós conversam muito sobre coisas práticas, como dinheiro, trabalho e o futuro, o garoto permanece calado e muitas vezes se desloca para escrever em outro lugar, ou interagir com os animais. A família pobre e trabalhadora, que vive do que consegue cultivar em suas terras e dos animais que criam, busca incentivo financeiro para que Youbin possa estudar e ter um futuro melhor, apostando em sua inteligência na escola como principal argumento do merecimento dessa ajuda. No entanto, Youbin pouco conversa, prefere se expressar por meio de seus poemas, com palavras muito bem selecionadas.


Deming Chen não se aproxima muito das pessoas que registra com sua câmera, pretende um filme que os observa mas não interfere, nem usa seus depoimentos como condutores. É citado como o cineasta que os filma, um elemento externo à família, e só se faz presente em um único momento, quando pergunta a Youbin se ele sente falta da mãe que deixou a casa quando ele ainda era um bebê e seu pai perdeu um braço no trabalho. Curiosamente, essa é também a única cena em que o garoto diz algo diretamente ao filme, mas não responde à pergunta. Always elabora sua atmosfera para retratar o mundo desse menino da forma como ele interage com tudo, com sensibilidade com a natureza que o rodeia e a introspecção de lidar com os acontecimentos e sentimentos dentro de sua própria cabeça. A arte que resulta desse processo são os poemas, enquanto o longa é o resultado de como o cineasta visualiza essa infância que passou e todas as suas características mais belas, com nostalgia pelo que se perde ao se tornar adulto.


Quando o tempo passa e Youbin cresce, a tela se torna widescreen e colorida. O menino que antes estava quase sempre com a mesma blusa do mickey e vivendo em sua própria mente, agora volta sua introspecção para a tela de um celular. O tempo invade o filme, o retrato sensorial de uma criança que poderia viver em qualquer momento e até mesmo em diferentes lugares do mundo, se torna uma realidade mais fria de uma jovem vida adulta em que os poemas se tornaram apenas memória em preto e branco, o contato sensível com os animais e a interação com a natureza tomam proporções totalmente práticas. O porco que não come deve ser morto para se tornar alimento, a dificuldade em se expressar se torna apenas silêncio e um rosto imerso em uma tela brilhante, sem produzir algo, o dinheiro precisa ser ganho para continuar a vida. 


Always precisa caminhar toda essa jornada e ver Youbin crescer para que suas imagens entre poemas tenham um efeito ainda mais melancólico, sua conexão afetiva com as cenas em preto e branco só atingem seu potencial quando as cores apresentam a realidade final, ou atual. É ao mesmo tempo um documentário que registra a vida de determinadas pessoas em relação com seu meio, social, econômico e familiar, e uma obra sobre o fim da infância, carregada de sentimentos construídos a partir daqueles que observa. 



 

Nota da crítica:

3.5/5


autor

Comments


bottom of page