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CPH:DOX 2025 | Escrevendo Hawa

Najiba Noori, com apoio do irmão Rasul Noori, registra a vivência feminina no Afeganistão, interditada ao longo do tempo e das gerações

Writing Hawa (Escrevendo Hawa)

Quando o avião de Najiba Noori se desloca de Cabul até a França, o ano é 2021 e seu país de origem está em colapso. A cineasta filma a proximidade à terra não como o alívio do refúgio, mas com a angústia do que deixou para trás. Seu filme, Writing Hawa (Escrevendo Hawa) que era, até então, sobre como sua mãe estava tomando posse da própria vida e destino, encontra uma curva que não o altera completamente, mas o torna um documentário sobre passado, presente e futuro da vivência feminina no Afeganistão. Se Hawa era o centro absoluto do longa, aos olhos fascinados da filha que via a mãe em crescente independência após anos de opressão, ela passa a ser ponto de intersecção das histórias das personagens dessa família comum, afetada como tantas outras pelas tradições, religião e a instabilidade de um lugar ocupado por décadas pelos Estados Unidos. O voo para o refúgio está permanentemente ligado ao passado, então, enquanto costura todos os receios do futuro.


Hawa se casou aos 13 anos, obrigada, com um homem 30 anos mais velho, não teve acesso a estudos ou trabalho, criou seis filhos e foi assim que Najiba teve a sorte de ser criada para ser o que quisesse. A mãe vê com orgulho a possibilidade de uma mulher estudar e trabalhar, rejeita como melhor opção o casamento e os filhos. Seus fantasmas do passado são tudo que ela não conseguiu fazer, o amor que não perseguiu, as letras que não aprender a ler nem escrever e a independência que não conquistou. Hawa não teve escolha e por isso fez questão que sua filha as tivesse. Najiba narra tudo isso enquanto filma com ternura a família, especialmente a mulher que a criou dessa forma. A diretora mostra-se brevemente, para contextualizar quem é naquele espaço, depois volta à posição de quem apenas registra, deixando sua voz como representação de quem é e do que sente.


O filme acompanha um despertar de Hawa, quase se deixando levar por essa ideia tão revolucionária de pequenas conquistas para uma mulher em seu contexto, de deixar o marido idoso em casa, trabalhar e estudar, pintar os cabelos e viajar. Esse clima é constantemente atravessado pela realidade em notícias na televisão. Escrevendo Hawa mistura o sonho de um futuro promissor a um momento instável de mais do que pés no chão, amarrados. Os noticiários começam avisando a possibilidade da retirada das tropas estadunidenses, enquanto Hawa tenta permanecer otimista e Najiba parece segurar sua preocupação do lado de fora. 


A primeira vez que a narrativa é atravessada, mudando um pouco os planos da cineasta, é quando sua sobrinha retorna. Zahra foi afastada da família por 12 anos, quando sua mãe, irmã de Najiba, se divorciou e perdeu sua guarda. O retorno da menina, quase adolescente, marca um ponto importante do filme, quando avó e neta traçam juntas o mesmo caminho, de se libertarem de oposições, fugindo de tradições retrógradas, para buscarem suas independências. As duas passam a viver juntas e a aprender a escrever juntas, Zahra tem finalmente a chance de viver, se vestir como quer, usar acessórios e enxergar algum futuro. Tudo que Hawa deseja para ela é o mesmo que esperava para si e suas filhas, estudo, trabalho, uma vida sem a obrigação do casamento e da maternidade. Mas, o Talibã tem outros planos.


O vácuo de poder criado quando as tropas estadunidenses se retiram do Afeganistão ameaça os sonhos das mulheres da família Noori, o que reflete a situação de todas as outras mulheres do país. Em pouco tempo as lousas divididas entre avó e neta, filmadas com tanto orgulho pela cineasta, param de ser usadas e Zahra precisa retornar à família paterna, fugindo do Talibã. Najiba se torna mais ativa no longa, ainda atrás das câmeras, mas tomando mais ação nos acontecimentos. O desespero se torna a maior regra e tudo que a televisão vinha introduzindo aos poucos, se torna realidade.


Quando o presidente foge, Najiba se torna protagonista de Escrevendo Hawa, refugiando-se às pressas na Europa. Seu irmão, então, Rasul Noori, ajuda a finalizar o filme em Cabul, filmando Hawa em seu progresso nos estudos dentro de casa, em sua angústia ao ver tantas mulheres com os futuros interditados e ao recolher tudo que a filha deixou para trás. Suas filmagens, mais tremidas, tornam-se também denúncias do aqui e agora, complementando a visão da irmã. A cineasta passa a se colocar imageticamente nas cenas e o documentário torna-se, por um pesadelo do destino, um retrato de gerações de mulheres lutando para existir no Afeganistão. O paralelo entre Zahra e Hawa torna impossível não concluir que nada mudou, o relógio do tempo praticamente estagnou, quando a adolescente é obrigada a casar e tem o contato com a família materna rompida. A história da avó, forçada a se casar e impedida de estudar, se repete. 


Enquanto Najiba fica presa no meio desse tempo tragicamente emperrado, compreendendo que a única forma de poder ter um futuro é em outro país, mãe e filha se comunicam por ligações e por um filme em andamento. O único desfecho possível para Escrevendo Hawa é o pessimismo, de que embora Hawa reencontre Najiba, irmãos e pais estejam juntos novamente longe de Cabul, Zahra, que representa uma geração nova, com tanto a se viver, está presa a uma realidade cruel. O documentário se estabelece como um registro da vivência feminina em regimes obscuros, do momento presente que se comunica diretamente com o ontem e o amanhã. A sensibilidade particular de Najiba, ao emprestar sua própria vida e das mulheres ao seu redor, nunca reduz o universo por se concentrar em uma residência única, mas o expande pela amostra sincera do retrato político e humano.



 

Nota da crítica:

4/5


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