CPH:DOX 2025 | K-Number
- Raissa Ferreira
- 31 de mar.
- 4 min de leitura
Entre o cenário maior da investigação e as jornadas emocionais particulares, Jo Se-young encontra revelações impactantes, mas tem dificuldades para organizar e apresentar seu material
Com a atmosfera mergulhada na investigação, K-Number abre suas cenas com uma promessa de um longa repleto de questionamentos e esforços para que algumas verdades sejam reveladas. A voz de um homem é escutada enfrentando alguém, em busca de respostas, enquanto documentos distorcidos preenchem a tela. É como se um microfone oculto fosse levado a uma reunião secreta. No entanto, a maioria das entrevistas e encontros filmados no longa serão às claras, embora informações impactantes realmente sejam levantadas, como dá o tom inicial. Mioka é uma espécie de protagonista da história, em sua quinta viagem a Seul, a mulher naturalizada estadunidense, retorna a seu lugar de origem para dividir com a cineasta Jo Se-young, seu árduo trabalho para descobrir quem verdadeiramente é e como chegou aos Estados Unidos. A jornada dessa mulher acaba levantando pontas soltas em todo o processo de adoção de crianças sul-coreanas por estrangeiros, e trazendo outros personagens para a narrativa.
Como a busca de Mioka vai misturando-se a outras perspectivas e somando-se a explicações sobre os problemas do serviço de adoção do país, o foco inicial que se dá a ela e a aproximação mais sensível com sua memória e motivações, vão se diluindo. Em dado momento, é possível até acreditar que Mioka não retornará ao centro de K-Number, pois sua história havia se tornado algo muito maior, cheia de ramificações. Jo Se-young é instável em definir se seu objetivo é estar mais íntima de uma personagem e acompanhar a investigação por esse viés emocional, contar jornadas diversas para compor um cenário maior e mais complexo, ou se concentrar nas questões legais e burocráticas, atravessando o mundo para desvendar como a Coreia do Sul entregou tantas crianças a outros países, escondendo suas verdadeiras origens. As diferentes linhas são todas possíveis e podem coexistir, mas a dosagem aplicada é desmedida a ponto de causar esse desequilíbrio entre o que está sendo relatado e como pode ser compreendido.
Ocorre que enquanto a busca de Mioka começa a revelar mentiras, como documentos adulterados e entidades que se recusam a ajudar propriamente, o longa vai seguindo as pistas e concentra-se muito nesses pontos, no que está errado, no que foi feito problematicamente, mas não é capaz de encontrar um caminho que ligue tudo, o fator humano dos personagens em busca de suas origens e a resposta que desvende a responsabilidade real do país nessas adoções suspeitas. Assim, outras pessoas que foram adotadas por famílias dos Estados Unidos e da Europa, que cresceram sem falar coreano e sem compreender quem eram antes da adoção, partilham seus processos no filme, mas sem o mesmo peso da história de Mioka, tornando-se um quebra-cabeças com o foco difuso.
K-Number explica e retorna muitas vezes ao fato de que situações de abandono foram fabricadas em documentos falsificados, que diversos países tinham interesse em adotar crianças sul-coreanas e, para isso, pressionaram o governo para autorizar os processos, bem como agências responsáveis por essas questões deixaram muitas lacunas suspeitas. Mas, sublinhar esses fatos diversas vezes não causa nenhum progresso, inchando o documentário ao não saber como priorizar a apresentação das informações e o material que possui. Essa falta de conclusão, de que ponto chegar com tudo que se descobriu, caminha pela mesma frustração do fim da busca de Mioka, que precisará retornar mais uma vez a Seul para continuar tentando compreender sua história.
Uma das personagens que o filme acaba acompanhando reencontra a mãe biológica, mas depende de um tradutor para se comunicar com ela, e ouve repetidas vezes da mulher que não gostaria de participar de mais encontros. As cenas são apresentadas sem muita proximidade, já que Mioka é a única que realmente tem um vínculo mais íntimo com o documentário. A impressão que fica é que existe muito material emocional rico em K-Number que não é atingido propriamente. Ainda que exista esse desequilíbrio em como o filme é montado, de uma tentativa de tornar o longa mais investigativo, levantando informações chocantes e perturbadoras, paralela à observação de pessoas reais em trajetórias de resgate de origens e laços familiares, tudo que descobre-se é, de fato, impactante. Até por isso, é como se o filme não fosse suficiente para o tamanho do assunto, suas revelações impressionam, mas não se completam.
A conclusão não assume totalmente que não existem respostas concretas, nem levanta caminhos possíveis para ligar tudo que encontrou. O governo entregou crianças desaparecidas para países estrangeiros como órfãos? Qual era o objetivo das adoções e porque os documentos eram falsificados? Porque os Estados Unidos e outros países da Europa tinham tanto interesse em adotar crianças sul-coreanas e porque tantas delas foram negligenciadas por essas famílias adotivas? Algumas perguntas que surgem em K-Number podem ser mistérios que carecem de investigação, ou talvez nunca sejam desvendados, outras são indagações possíveis de serem discutidas em tela, com os personagens que estão disponíveis. No entanto, com tanto material, entrevistas, pessoas e descobertas, Jo Se-young tem dificuldade em organizar seus pensamentos.
Esse texto faz parte da cobertura do CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2025
Nota da crítica:
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