CPH:DOX 2025 | The Brink of Dreams
- Raissa Ferreira
- 31 de mar.
- 4 min de leitura
Nada Riyadh e Ayman El Amir brincam com a encenação e a realidade, usando a atmosfera doce e sonhadora de uma trupe feminina de teatro para questionar os padrões patriarcais
Em um pequeno vilarejo no Egito, tudo parece em processo de construção. As casas possuem tijolos aparentes, muitas paredes são vistas incompletas pelas ruas e os espaços são monocromáticos, da cor da terra. As pessoas que ali vivem também parecem estagnadas em processo de elaboração, com suas estruturas rústicas às claras, presas a tradições e costumes retrógrados. No meio disso tudo, Nada Riyadh e Ayman El Amir observam um pontinho de luz e cores, um grupo de teatro de rua formado por meninas que ousam sonhar. Durante quatro anos, a equipe de filmagens acompanha as vidas de algumas garotas da trupe, que realizam performances nas ruas do vilarejo com os materiais que conseguem, sempre focando seus roteiros em questionamentos aos padrões, principalmente desafiando as limitações que as mulheres dali vivem.
Majda é uma espécie de protagonista, como diretora do grupo que sonha em estudar teatro na cidade grande e se tornar dramaturga, mas também por como sua maneira de viver se torna um fio narrativo para The Brink of Dreams colocar em intersecções as vidas das outras meninas. Ela trabalha durante os dias em um mercadinho local, é cercada por imagens religiosas de Jesus Cristo, frequenta a igreja, mas tem sonhos muito maiores que os tijolinhos de sua vila conseguiriam conter. Ao mesmo tempo, Monica é a cantora da trupe, que idealiza uma vida de fama, chega a dizer que é a coisa mais importante que deseja, e quer se casar com o namorado, acreditando que ele apoiará seu sonho. A terceira jovem que o longa acompanha é Haidy, muito dedicada ao teatro, talentosa, e que rejeita todos os pretendentes que surgem, pois só quer se casar quando se apaixonar primeiro.
Ficção e realidade se misturam ao longo dos anos, as meninas vão se tornando mulheres enquanto o documentário avança e muitas vezes os momentos mais intensos de interações são tão absurdos que soam como encenações. É como a trupe Panorama encara suas realidades, fazem cenas de enfrentamento direto com as pessoas ao seu redor, questionando seus costumes, usam a performance como ferramenta para debater incoerências como o casamento forçado, meninas jovens obrigadas a serem esposas e mães, e limitações em vestuários. Dayr Al Barsha, onde The Brink of Dreams se passa, é uma vila copta cristã no Egito, fazendo parte da maior comunidade cristã do Oriente Médio, e a religião é fundamental no espaço, tanto que a igreja parece ser o único lugar acabado, estruturalmente falando, nas imagens áreas.
Ainda assim, as meninas parecem um enfrentamento às crenças patriarcais, mas conforme vão se tornando mulheres, tudo vai se alterando. O filme passa a observar por meio de Majda, suas amigas se apaixonarem e se deixarem levar pelos costumes que criticavam. Monica se casa e diz que irá retornar ao teatro em seguida, o que nunca acontece, quando torna-se mãe, ficar em casa e cantar para o filho toma o primeiro lugar de suas prioridades, deixando para trás a jovem que tinha certeza que seria famosa e que seu marido estaria na primeira fila de seus shows. Haidy se apaixona por um rapaz que é contra sua participação no teatro, deseja a afastar de suas amigas e até é agressivo em dado momento, arremessando seu celular para longe. Em seguida, a jovem se desliga da trupe Panorama e é questionada pelo pai, mas opta pelo mesmo caminho do casamento e de ficar em casa. Majda é a única que ainda quer viver em Cairo e seguir seus sonhos.
É curioso pensar se tudo não passa de mais uma performance afiada do grupo de teatro, um enfrentamento que sai das pequenas ruas e ganha até mesmo as telas em Cannes, que deixa de debater apenas com os vizinhos - muitos se chocam com as apresentações das meninas -, e passa a levar a um público muito maior, pelo cinema, suas ideias de liberdade de escolha e pensamento para as mulheres. Se é isso, ou apenas a triste realidade de crescer e se adequar aos costumes, de meninas que acabam com sonhos interrompidos pelo cenário em que vivem, The Brink of Dreams não pretende esclarecer, apenas entregar a reflexão a quem assiste. Jamais deixando-se levar pelo pessimismo, a atmosfera doce de garotas que se permitem sonhar e idealizar realidades além dos tijolos aparentes, casamentos e filhos, é renovada. Nada Riyadh e Ayman El Amir optam por um certo otimismo e leveza, deixando a mensagem de que a arte toca, inspira e atravessa gerações.
O desejo das mulheres de se libertarem está estampado na safra de documentários dos últimos anos e a trajetória de Majda, real ou encenada, une-se a um grupo de personagens corajosas preenchendo as telas no mundo todo com suas histórias que refletem realidades e sonhos muito maiores.
Esse texto faz parte da cobertura do CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2025
Nota da crítica:
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