top of page

CPH:DOX 2025 | 9-Month Contract

Ketevan Vashagashvili documenta o complexo e problemático serviço de barriga de aluguel, por meio de uma relação próxima com uma jovem mãe na Geórgia

9-Month Contract

Ao introduzir seu primeiro longa documental, Ketevan Vashagashvili utiliza imagens de um curta que dirigiu em 2012, mostrando que suas protagonistas de 9-Month Contract são personagens que acompanha há muito tempo, desde quando Elene ainda era bem pequena e ela e sua mãe Zhana moravam nas ruas. Segundo a cineasta, desde seu pequeno filme e provavelmente por causa dele, mãe e filha conseguiram melhorar um pouco suas vidas. Agora, com uma casa para morar e Elene em sua adolescência, Vashagashvili retorna com suas lentes para documentar mais uma vez os esforços de uma mulher para que sua filha possa estudar e ter um futuro melhor, em meio à Geórgia e todos seus problemas sociais e econômicos. Dessa forma, já existe um claro entrosamento entre as personagens e a diretora, que ainda assim prefere se manter apenas como observadora na maior parte do tempo, mas a relação facilita a captação da vida de forma mais orgânica, até mesmo com alguns acenos muito amigáveis que tornam a câmera menos uma intrusa no espaço familiar e mais uma velha conhecida.


“Olha quem está aqui”, é o que Zhana diz em alguma das primeiras cenas após o título aparecer na tela, indicando para Elene que Vashagashvili está na casa. O sorriso da adolescente confirma que a observação é bem-vinda e em seguida, capta o anúncio de uma boa nota na escola, além da cumplicidade entre as duas. Descobre-se mais tarde que Zhana tem apenas 29 anos, foi mãe muito jovem e não terminou os estudos. Sua figura materna e batalhadora a faz parecer mais velha, com um amadurecimento que veio cedo demais, mas a casca é ultrapassada pela intimidade que o longa consegue atingir, mostrando como Zhana ainda é alguém jovem e com sonhos interrompidos pelo único objetivo de criar bem sua filha.


Mesmo que o título deixe um tanto claro o tema abordado, as cenas de um ultrassom surpreendem. A mulher que 9-Month Contract observa há algum tempo está secretamente grávida. Digo secretamente porque a condição é escondida de Elene e, até aquele momento, não havia sido abordada para a pessoa espectadora. Não somente isto é revelado no exame, como também que não é nem a primeira, nem a segunda vez que Zhana carrega um bebê como barriga de aluguel. Aos 7 meses de gestação, ela está perto da terceira cesárea de sua vida, antes dos 30 anos. 


Vashagashvili realiza com seu documentário uma aproximação de uma questão que afeta a Geórgia (como é costurado no longa por áudios jornalísticos sobre o aumento de mulheres que precisam de dinheiro no país e recorrem a este trabalho), por meio do retrato individual de Zhana. A câmera a segue em seu trabalho como caixa, depois em consultas médicas e no ambiente familiar com Elene. É como se em todos os ambientes ela fosse quase invisível, uma força de trabalho e um útero, mas em casa há um universo particular de muita cumplicidade, afeto e também frustrações. 


Elene muitas vezes tem conversas fortes com a mãe e fica entre o choro e o riso. Lágrimas se misturam a brincadeiras e isso resume bastante a dinâmica entre as duas, de como é dolorosa essa vida de dificuldades e ao mesmo tempo bela pelo amor que partilham, mas, principalmente, por como Zhana projeta uma pressão na filha, sempre lutando para que ela tenha condições de estudar e realizar um sonho profissional que é, na verdade, da mãe. A gravidez escondida é revelada quando o parto complicado resulta em três dias no hospital. Quando a mãe volta, diz a Elene que fez tudo por ela. Essa constante de Zhana em trabalhar exaustivamente e precisar buscar como renda extra o serviço de barriga de aluguel, exerce uma influência direta na relação de mãe e filha.


Além do microcosmos das duas, 9-Month Contract revela a complexidade ao redor de um trabalho que é pouco regulamentado e resulta em diversos problemas. Na primeira gravidez acompanhada pelo documentário, Zhana passa por ameaças e situações bastante conturbadas com o pai biológico do filho que carregou, além da agência pela qual foi contratada. Ela busca ajuda em um serviço de apoio às mulheres e todo esse processo, observado silenciosamente pelas câmeras, escancara um sistema falho em proteger pessoas vulneráveis socialmente. Zhana representa um recorte social, de mulheres na Geórgia (mas pode-se pensar em vários lugares do mundo), que por falta de apoio do estado, condições financeiras ruins e dificuldade de acesso a estudo e moradia, usam seu corpo como força de trabalho, no sentido mais literal possível.


Essas mulheres são vistas e tratadas, como mostra o filme, praticamente como incubadoras desumanizadas. Além disso, a constante dificuldade faz com que o dinheiro sempre acabe e seja necessário realizar o serviço mais uma vez, entrando em um ciclo vicioso extremamente nocivo. Poucas vezes as cenas captam alguém defendendo Zhana, como uma das médicas faz em dado momento, em geral, é um filme denso, com aspectos dolorosos de acompanhar, por como essa mulher é abandonada e explorada de tantas formas. Perder o útero aos 30 anos é só uma das muitas cicatrizes e ainda há de se comemorar que sua vida não se perdeu junto.


Neste momento, enquanto Vashagashvili acompanha o parto da última barriga de aluguel que Zhana faz, a câmera e a cineasta se posicionam ao lado da cabeça da mulher, praticamente delimitando uma barreira visual. O que interessa ao filme e à diretora é aquela pessoa, humana, que no momento mais duro enfrentado até ali, olha para as lentes, atravessa o relato distante e fala com Vashagashvili. O “chegue mais perto” se transporta para um close, não é apenas quem filma que se aproxima, mas também quem assiste. A intimidade entre quem opera o aparato e quem é observada confere mais humanidade ao longa, sem que pareça um aproveitamento, nem soe apelativo, extraindo algo genuíno do momento. 


9-Month Contract encara os problemas de um sistema que explora mulheres e seus corpos, aproveitando um vínculo sincero para humanizar, dar rosto e espaço, a quem é afetada e abandonada por um estado de constante crise. Estampar as cenas finais com Elene nas ruas, em meio a protestos, parece questionar o futuro que ela e sua mãe tanto batalham para existir.




 

Nota da crítica:

3.5/5


autor

Comments


bottom of page