CPH:DOX 2025 | 9-Month Contract
- Raissa Ferreira
- 27 de mar.
- 4 min de leitura
Ketevan Vashagashvili documenta o complexo e problemático serviço de barriga de aluguel, por meio de uma relação próxima com uma jovem mãe na Geórgia
Ao introduzir seu primeiro longa documental, Ketevan Vashagashvili utiliza imagens de um curta que dirigiu em 2012, mostrando que suas protagonistas de 9-Month Contract são personagens que acompanha há muito tempo, desde quando Elene ainda era bem pequena e ela e sua mãe Zhana moravam nas ruas. Segundo a cineasta, desde seu pequeno filme e provavelmente por causa dele, mãe e filha conseguiram melhorar um pouco suas vidas. Agora, com uma casa para morar e Elene em sua adolescência, Vashagashvili retorna com suas lentes para documentar mais uma vez os esforços de uma mulher para que sua filha possa estudar e ter um futuro melhor, em meio à Geórgia e todos seus problemas sociais e econômicos. Dessa forma, já existe um claro entrosamento entre as personagens e a diretora, que ainda assim prefere se manter apenas como observadora na maior parte do tempo, mas a relação facilita a captação da vida de forma mais orgânica, até mesmo com alguns acenos muito amigáveis que tornam a câmera menos uma intrusa no espaço familiar e mais uma velha conhecida.
“Olha quem está aqui”, é o que Zhana diz em alguma das primeiras cenas após o título aparecer na tela, indicando para Elene que Vashagashvili está na casa. O sorriso da adolescente confirma que a observação é bem-vinda e em seguida, capta o anúncio de uma boa nota na escola, além da cumplicidade entre as duas. Descobre-se mais tarde que Zhana tem apenas 29 anos, foi mãe muito jovem e não terminou os estudos. Sua figura materna e batalhadora a faz parecer mais velha, com um amadurecimento que veio cedo demais, mas a casca é ultrapassada pela intimidade que o longa consegue atingir, mostrando como Zhana ainda é alguém jovem e com sonhos interrompidos pelo único objetivo de criar bem sua filha.
Mesmo que o título deixe um tanto claro o tema abordado, as cenas de um ultrassom surpreendem. A mulher que 9-Month Contract observa há algum tempo está secretamente grávida. Digo secretamente porque a condição é escondida de Elene e, até aquele momento, não havia sido abordada para a pessoa espectadora. Não somente isto é revelado no exame, como também que não é nem a primeira, nem a segunda vez que Zhana carrega um bebê como barriga de aluguel. Aos 7 meses de gestação, ela está perto da terceira cesárea de sua vida, antes dos 30 anos.
Vashagashvili realiza com seu documentário uma aproximação de uma questão que afeta a Geórgia (como é costurado no longa por áudios jornalísticos sobre o aumento de mulheres que precisam de dinheiro no país e recorrem a este trabalho), por meio do retrato individual de Zhana. A câmera a segue em seu trabalho como caixa, depois em consultas médicas e no ambiente familiar com Elene. É como se em todos os ambientes ela fosse quase invisível, uma força de trabalho e um útero, mas em casa há um universo particular de muita cumplicidade, afeto e também frustrações.
Elene muitas vezes tem conversas fortes com a mãe e fica entre o choro e o riso. Lágrimas se misturam a brincadeiras e isso resume bastante a dinâmica entre as duas, de como é dolorosa essa vida de dificuldades e ao mesmo tempo bela pelo amor que partilham, mas, principalmente, por como Zhana projeta uma pressão na filha, sempre lutando para que ela tenha condições de estudar e realizar um sonho profissional que é, na verdade, da mãe. A gravidez escondida é revelada quando o parto complicado resulta em três dias no hospital. Quando a mãe volta, diz a Elene que fez tudo por ela. Essa constante de Zhana em trabalhar exaustivamente e precisar buscar como renda extra o serviço de barriga de aluguel, exerce uma influência direta na relação de mãe e filha.
Além do microcosmos das duas, 9-Month Contract revela a complexidade ao redor de um trabalho que é pouco regulamentado e resulta em diversos problemas. Na primeira gravidez acompanhada pelo documentário, Zhana passa por ameaças e situações bastante conturbadas com o pai biológico do filho que carregou, além da agência pela qual foi contratada. Ela busca ajuda em um serviço de apoio às mulheres e todo esse processo, observado silenciosamente pelas câmeras, escancara um sistema falho em proteger pessoas vulneráveis socialmente. Zhana representa um recorte social, de mulheres na Geórgia (mas pode-se pensar em vários lugares do mundo), que por falta de apoio do estado, condições financeiras ruins e dificuldade de acesso a estudo e moradia, usam seu corpo como força de trabalho, no sentido mais literal possível.
Essas mulheres são vistas e tratadas, como mostra o filme, praticamente como incubadoras desumanizadas. Além disso, a constante dificuldade faz com que o dinheiro sempre acabe e seja necessário realizar o serviço mais uma vez, entrando em um ciclo vicioso extremamente nocivo. Poucas vezes as cenas captam alguém defendendo Zhana, como uma das médicas faz em dado momento, em geral, é um filme denso, com aspectos dolorosos de acompanhar, por como essa mulher é abandonada e explorada de tantas formas. Perder o útero aos 30 anos é só uma das muitas cicatrizes e ainda há de se comemorar que sua vida não se perdeu junto.
Neste momento, enquanto Vashagashvili acompanha o parto da última barriga de aluguel que Zhana faz, a câmera e a cineasta se posicionam ao lado da cabeça da mulher, praticamente delimitando uma barreira visual. O que interessa ao filme e à diretora é aquela pessoa, humana, que no momento mais duro enfrentado até ali, olha para as lentes, atravessa o relato distante e fala com Vashagashvili. O “chegue mais perto” se transporta para um close, não é apenas quem filma que se aproxima, mas também quem assiste. A intimidade entre quem opera o aparato e quem é observada confere mais humanidade ao longa, sem que pareça um aproveitamento, nem soe apelativo, extraindo algo genuíno do momento.
9-Month Contract encara os problemas de um sistema que explora mulheres e seus corpos, aproveitando um vínculo sincero para humanizar, dar rosto e espaço, a quem é afetada e abandonada por um estado de constante crise. Estampar as cenas finais com Elene nas ruas, em meio a protestos, parece questionar o futuro que ela e sua mãe tanto batalham para existir.
Esse texto faz parte da cobertura do CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2025
Nota da crítica:
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