CPH:DOX 2025 | How to Build a Library
- Raissa Ferreira
- 24 de mar.
- 4 min de leitura
Christopher King e Maia Lekow documentam o processo sem fim de recuperação da memória do Quênia, por meio do trabalho de duas mulheres em conflito com o sistema
Iniciar as filmagens de um documentário acompanhando algum feito em progresso, sem saber onde pode-se chegar, leva a equipe a construir a obra conforme os acontecimentos vão se desenrolando e compreender ao longo desse processo o que é o filme de fato, até onde ele vai e qual história deve contar. Existem diversos longas que demoraram anos, até décadas, para serem finalizados, outros que ficaram incompletos por muito tempo e foram terminados apenas quando o material necessário foi captado. Quando uma das telas iniciais de How to Build a Library informa o ano de 2017, já é de se imaginar que o trabalho do casal de diretores Christopher King e Maia Lekow passou por tais questões, uma vez que decidiram que acompanhar a dupla Wachuka e Shiro seria seu próximo filme. Ano após ano, dificuldade em cima de dificuldade, o documentário acompanha um progresso emperrado por burocracias e complexidades políticas que parece não ter fim.
Wachuka e Shiro são duas mulheres que conseguem um contrato de 5 anos para administrar três bibliotecas de Nairóbi, tendo como objetivo principal restaurar a maior e mais importante, a biblioteca McMillan. Não é apenas reformar o prédio, de estrutura clássica e opulenta, o sonho dessas duas mulheres, mas sim de reconstruir a história do lugar por cima de um passado racista e colonial do país, abrindo um novo espaço para a literatura africana e de reconquista da cultura do Quênia, que não apenas reflita sua população, mas também sirva de estudo e inspiração para as novas gerações que poderão frequentar o lugar. A biblioteca encontrada abandonada e cheia de entulhos nas filmagens de 2017, foi um espaço construído em 1932 pelos colonizadores britânicos, para uso somente de pessoas brancas.Atravessar esse histórico e rebater o passado colonial não é apenas a base da missão de Wachuka e Shiro, como também um fantasma que assombra o progresso dessa reconstrução e se torna a espinha dorsal do longa. Com o contrato de 5 anos em mãos e uma biblioteca aos pedaços, as duas mulheres organizam festas de gala anuais para levantar fundos, vão atrás de doações, contratam pessoas e dedicam suas vidas completamente ao trabalho. Mesmo assim, ano após ano, tudo parece emperrado pelas burocracias e outros problemas. Apesar da dificuldade inicial ser o dinheiro, como em qualquer projeto, os fundos conseguem ser captados, mas o tempo vai avançando e o contrato chegando ao fim, dependendo do governo para sua renovação.
Além disso, pequenas barreiras de politicagens vão mostrando para Wachuka e Shiro que se manter fiel ao que acreditam é mais difícil do que parece, quando se trabalha dependendo de um sistema de heranças coloniais, com uma democracia frágil e no capitalismo sedento por vantagens. Políticos pedem favores em troca de assinar documentos essenciais ao processo de renovação da biblioteca, a dupla é obrigada a receber o rei da Inglaterra no prédio - ainda que estejam em uma missão justamente para resgatar as raízes do Quênia e enterrar o colonialismo -, papéis ficam anos passando por mãos corruptas e outras que não conseguem agir. Do outro lado, profissionais do setor não encaram bem as mudanças propostas por Wachuka e Shiro e se sentem desrespeitados e desconsiderados no processo. Nesse último ponto, mais delicado, o filme assume o papel de não colocar suas protagonistas nem como certas nem erradas, apenas apresenta as imagens, com constrangimentos e embates, sem fazer juízo de valor, ainda que nas condições políticas anteriormente citadas, deixe mais claro o posicionamento das mulheres.
How to Build a Library registra, de todos os lados, as contradições e complexidades de reconstruir a história por cima do status quo e de um passado de raízes apagadas, em prol da reconstituição da memória do país. A biblioteca ser reerguida com autores africanos e estar aberta ao povo de Nairóbi significa dar um fim à amnésia cultural instalada pelos estrangeiros que dominavam o espaço e exploravam pessoas e recursos. O longa também tenta dar profundidade às vidas pessoais de Wachuka e Shiro, que acabam se diluindo no trabalho intenso, e mesmo que seja pouco efetivo nesse sentido, reforça um desgaste que é sentido na própria obra, ao ver o passar dos anos estampado numericamente na tela, sem que realmente o progresso seja palpável na estrutura física a ser reformada.
Embora o formato protocolar seja pouco inspirado, a maior frustração ao assistir How to Build a Library é que o casal de cineastas parece ter desistido de acompanhar essa história, deixando um buraco aberto ao final. A missão interessante e cheia de complexidades de Wachuka e Shiro até sustenta a execução pouco empolgante de King e Lekow, mas é incompreensível como uma equipe com filmagens que se iniciam em 2017, atravessam uma pandemia e tantas mudanças, não foi capaz de aguardar mais algum tempo para captar o que poderia ser um desfecho nessa história. A sensação é de que a biblioteca McMillan permanece igual do começo ao fim, e as burocracias são as mesmas, o filme passa essa ideia de inércia principalmente ao encerrar com textos em tela que dizem que em 2025, ano de lançamento do documentário, provavelmente se iniciará a reforma, finalmente. É como assistir a pessoas rolando pedras morro acima e quando estão pertinho do topo, virar as costas torcendo para que não caiam lá pra baixo.
Esse texto faz parte da cobertura do CPH:DOX Copenhagen International Documentary Film Festival 2025
Nota da crítica:
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