Mostra Lugar de Mulher é no Cinema | Mostra Luas
- Raissa Ferreira
- 25 de jul. de 2024
- 4 min de leitura
Cobertura dos curtas selecionados na Mostra Luas, focada em obras nacionais
Abodô
2023 / RECIFE - PE
Direção e roteiro: Bruna Leite e Cecília da Fonte

O que a princípio parece ser apenas mais um filme sobre a pandemia, ganha novos contornos à medida que começamos a compreender a razão para a angústia de Dolores ao ser impedida de deixar o Brasil. De forma sutil, nas conversas e pistas deixadas, mas também potente, ao aproximar os planos do rosto da protagonista enquanto vai aumentando a tensão desse desespero, Abodô vai fechando o cerco ao redor dessa mulher para elaborar a sensação de que não há opção, o sentimento verdadeiro de ser uma pessoa sem direitos reprodutivos garantidos no seu país. O curta vai traçando paralelamente um companheirismo pouco visto nas obras, do parceiro que divide essa carga dentro de suas possibilidades, mas sempre lembra que nos piores momentos é Dolores por ela mesma, sozinha, lutando para ter controle de seu próprio corpo. Existe uma dificuldade para amarrar todas as pontas e fechar essa ideia de forma mais coerente, mas tem boa execução na essência da questão que quer destacar enquanto filme-manifesto.
Cabana
2023 / BELÉM - PA
Roteiro, direção e produção: Adriana de Faria

Maravilhoso como Adriana de Faria e sua equipe conseguem em Cabana, com apenas um espaço, e com pouco tempo em tela, criar uma tensão tão grande e crescente e explorar uma história tão vasta. Sem a voz dos personagens, o filme depende de todos os seus outros elementos para construir o desespero dessas mulheres. Toda a força da atuação, a clausura da cabana que as aperta na encenação o tempo todo dentro dos planos e a expectativa de que algo ruim está prestes a acontecer, são suficientes para construir a tensão e o medo de algo que nunca vemos, mas sentimos por elas e pelo espaço. Um trabalho de som fantástico (tudo feito em foley), uma fotografia belíssima e uma aula de cinema em poucos minutos e com poucos recursos.
Mãe
2024 / PETROLINA - PE
Direção: Natália Tavares

O horror de Mãe é totalmente construído em nosso imaginário, no que está fora do campo, além da cena, montado principalmente na imagem que se cria a partir da ausência. É essa não presença do pai que motiva a mulher abandonada e agir de formas obscuras, da mesma maneira que é o que Luís não vê e não compreende a fundação dessa relação assombrosa. O pai invisível é praticamente colocado como uma entidade a qual a mãe serve, assim como tudo é uma troca entre o filme e o espectador em que a moeda é o que não pode ser visto, os homens que entram no casebre e desaparecem, uma possibilidade que se cria apenas no olhar de Luís para uma menina dentro de um carro caro e o abraço entre pai e filho. É a cruzada do menino além da porta que o permite enxergar algo que apenas podemos imaginar, transformando Luís de espectador em agente ativo dessa história, cúmplice que também se retira de campo, sobrando a ausência para fechar a atmosfera mística desse terror em que fé e crença estão mais próximas do lado escuro do que da esperança.
O Prazer é Todo Meu
2023 / FLORIANÓPOLIS - SC
Roteiro, Produção e Direção: Vanessa Sandre

Amélia tem mais de 70 anos quando uma morte a acorda para a vida, mas não é sua idade que se mostra um peso, no sentido do tempo perdido sem sentir prazer, e sim a rotina a qual está atrelada em sua condição de mulher. O marido parece um fantasma, um peso de papel vagando pela casa, com as cenas sempre focando na protagonista e o enquadrando pelos cantos, é até surpreendente ouvir o homem proferir uma única palavra, justamente o nome da esposa que ignora dia após dia. É com muita beleza e paixão que Vanessa Sandre trabalha em conjunto com Margarida Baird para investigar as opressões ao corpo feminino e romper com tabus de idade, corporeidade e sexualidade, utilizando a própria imagem da protagonista, exibindo sua pele como ato de amor, cuidado e força, permitindo que a atriz se relacione com seu corpo em cena e esses gestos e expressões digam tudo que precisa ser dito. Assim, não poderia ser diferente, a conquista do orgasmo de Amélia é por ela mesma, sem a intervenção de um parceiro antigo ou novo.
A Faísca
2024 / SALVADOR - BA
Direção e Roteiro: Gabriela Monteiro

O que existe de mais importante em A Faísca é a naturalidade com que as relações acontecem, das mulheres negras com suas amizades, no lugar em que vivem, trabalham e na praia que frequentam. Ainda que a montagem picotada distraia um pouco e tire um tanto do peso de alguns diálogos mais relevantes, já que nessas cenas é mais o discurso que importa, o filme consegue ilustrar as temáticas que lhe são caras, as dificuldades enfrentadas por essas mulheres, mas também a força que encontram umas nas outras. O senso de comunidade é bem estabelecido mesmo que só existam as duas amigas em cena, já que Gabriela Monteiro está sempre focando no compartilhar, de histórias verbais, emoções e carinho, em oposição à violência e o preconceito que ficam mais no texto, ideias que existem e afetam esse universo, mas não tem a mesma relevância na imagem do que a força dos afetos.
Comments