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O Tango antes do Natal

Relatos pessoais sobre uma véspera de natal com Satantango e como o cinema sempre foi minha melhor companhia


Satantango

Em 30 anos de vida, acredito que meu primeiro natal sozinha tenha sido esse, em 2022. Quando decidi passar a data em casa, longe de festas de família que nunca fizeram muito sentido para mim, planejei algo que eu sempre quis fazer mas nunca encontrava o tempo e a disposição, assistir a um filme de mais de 7 horas, grande conhecido da cinefilia: Satantango. Me surpreendi com quantas pessoas parabenizaram minha coragem por encarar o filme em um dia só, principalmente num dia de festas, e quantas pessoas interagiram comigo sobre minha experiência. A verdade é que eu nunca pensei que seria uma tarefa árdua ver um filme de tantas horas já que é normal que eu veja 4 filmes seguidos em um dia parado de final de semana. Mas nada poderia me preparar para a densidade do filme de Béla Tarr, fator que desconsiderei ao elaborar meu plano, ainda bem.

Satantango não só tem mais de 400 minutos como também precisa de cada um desses minutos. O longa é uma experiência dura, não por ser tedioso, mas por retratar um mundo quase pós-apocalíptico, miserável, triste e soturno, com um realismo absurdo. Tudo é exatamente o que é, inclusive o tempo. Tarr não retira espaços vazios, mas os usa como sua linguagem, o filme todo é feito em longos planos contemplativos, planos-sequência onde a câmera passeia de forma poética para mostrar detalhes daquele mundo, da realidade daquelas pessoas e de suas dores, problemas e intrigas. Muitas vezes a câmera é estática e acompanhamos por longos minutos o tempo passar ou, em outras vezes, algo terrível acontecer. Destaco aqui o capítulo do filme que Tarr nos faz acompanhar uma menina com um gato, que ela eventualmente tortura e mata envenenado. Poucas vezes vi algo tão cruel e brutal, tão difícil de assistir, e ficamos ali, minutos e minutos, apenas olhando no tempo certo de tudo acontecer, sem o conforto de um corte, de uma mudança de plano. Tudo em Satantango é brutal, a natureza que joga chuvas intermináveis, o tempo que consome, a morte, as bebedeiras para anestesiar os problemas, as traições, a desconfiança e os longos caminhos andados. Assistir a essas mais de 7 horas é como andar na estrada de lama que os personagens tanto usam.


Mas, ainda que seja pesado, é também fascinante. Me senti totalmente capturada por esse mundo, encantada com a direção e atrelada aos ciclos que a narrativa propõe, em texto e imagem. O filme tem uma ideia pessimista de que todos estão fadados a um destino cruel, andando em círculos para encontrarem os mesmos finais, e assim, ainda que houvessem pausas e intervalos, foi fácil para mim terminar essa jornada no mesmo dia, encerrar esse ciclo sem maiores desvios. O resultado foi uma sensação de ter vivido algo grandioso e uma exaustão mental e emocional. Deixei para a manhã de natal então, revisitar minha animação favorita da infância, O Estranho Mundo de Jack, algo que certamente descansaria minha cabeça.

Me peguei pensando em quantas vezes o cinema foi minha melhor companhia, seja neste natal em que esses dois filmes foram meus parceiros ou em tantos outros dias. O filme de Henry Selick e Tim Burton foi uma obsessão minha por anos. Minha parte favorita sempre foi a introdução, observar aquelas portinhas sempre me fez sentir que eu estava realmente entrando em um outro universo, e que existiam muitos outros para explorar. Era um costume dos meus pais que toda semana escolhêssemos em torno de 10 filmes na locadora e era um costume meu que quase toda semana o desenho da caveira que quer roubar o natal estivesse no bolo. Eventualmente meu pai descobriu como copiar fitas e logo depois chegaram os dvds, então ficou fácil para mim decorar todas as falas e músicas. Nas mesmas idades eu também fui obcecada por muitos filmes, entre eles estava Titanic — que ganhei, felizmente, o vhs duplo quando era pequena. Fato é que o cinema sempre esteve lá pra mim, quando meus pais dormiam cedo no natal e eu ficava sozinha com a televisão, nos finais de semana que íamos na locadora escolher novos filmes (e repetidos), nos dias tristes e felizes, a realidade é que eu cresci na frente das telas, criada e cercada pelas narrativas fantásticas da sétima arte.


Escolher passar a véspera de natal assistindo a um clássico enorme não foi uma bobagem cinéfila, mas foi uma decisão de estar finalmente fazendo algo que faz sentido para mim. Não sei se Jesus nasceu, muito menos se foi no dia 25 de dezembro, não tive uma família muito natalina, mas sei que os filmes existem e que ficou muito mais fácil nos últimos anos mergulhar no mundo deles e entrar por suas portas.


A todos que acreditam no deus do cinema e encontram conforto nele.


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