Uma retrospectiva do ano que passou
Em 2024 realizei a cobertura de 8 festivais, foram mais de 500 filmes assistidos e um número que ficou difícil de calcular de críticas, incluindo esse site, a Filmes & Filmes e o Feito por Elas. O trabalho intenso me fez descobrir novos mundos, me aprofundando principalmente nos documentários, mas também me mostrando a necessidade de desacelerar e redescobrir o meu prazer como cinéfila. A cada ano que passa, busco me afastar de maratonas de premiações e focar na descoberta, em filmes feitos agora que quase não chegam até aqui, festivais menos celebrados, ou na tentativa de consumir de forma mais equilibrada lançamentos e obras do passado, espero conseguir me alinhar com esses objetivos melhor em 2025.
Cobrindo diversos festivais focados em documentários, vi a necessidade de elaborar uma lista específica para os longas documentais que assisti como crítica, alguns sem lançamento tradicional no Brasil, para que sejam descobertos, outros que passaram por festivais por aqui de forma tímida e alguns que já fizeram sucesso, como foi com Salão de Baile. As listas a seguir refletem minhas preferências e também os caminhos que percorri como amante do cinema e como crítica, seguindo como lógica apenas minha relação pessoal com as obras vistas em 2024, lançadas comercialmente, em festivais, streamings e meios alternativos. Ainda que a maioria possam ser escolhas comuns, destaco algumas jóias aqui que merecem ser encontradas.
Meus Filmes Favoritos de 2024 - Cinema Brasileiro
10º - Greice, Leonardo Mouramateus
9º - Os Enforcados, Fernando Coimbra
8º - Grande Sertão, Guel Arraes
7º - Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, Bel Bechara e Sandro Serpa
6º - A Filha do Palhaço, Pedro Diógenes
5º - Salão de Baile, Juru e Vitã Crítica
4º - Malu, Pedro Freire
3º - Motel Destino, Karim Aïnouz
2º - Eros, Rachel Daisy Ellis
1º - Oeste Outra Vez, Erico Rassi
Meus Filmes Favoritos de 2024 - Dirigido por Mulheres
10º - Shahid, Narges Kalhor
9º - Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, Bel Bechara e Sandro Serpa
8º - Salão de Baile, Juru e Vitã
7º - Eros, Rachel Daisy Ellis
6º - Bird, Andrea Arnold
5º - Abril, Dea Kulumbegashvili
4º - A Primeira Profecia, Arkasha Stevenson
3º - No Other Land, Rachel Szor, Yuval Abraham, Hamdan Ballal e Basel Adra
2º - A Substância, Coralie Fargeat
1º - Agarrame Fuerte (Don’t You Let Me Go), Ana Guevara e Leticia Jorge
Meus 50 Filmes Favoritos de 2024
50º - Banel e Adama
O casal que divide uma intimidade única, sempre em sintonia como dois grandes amigos que se apaixonaram, parece ter nascido descolado daquela realidade bastante tradicional, de uma religião que pede certos costumes e impõe comportamentos, como casamentos arranjados. É como se ambos fossem destinados a uma liberdade além disso, mas são fadados às tradições, por sangue e expectativas externas. Ramata-Toulaye Sy choca, então, seus personagens para observar como viverão esse amor apesar da natureza, do deserto e das pessoas. Mas se Adama passa a ser movido pelo medo, Banel é pela coragem, e se recusa a viver uma vida que lhe é imposta.
49º - Continente
Existem dois grandes pesos que transformam a experiência ao assistir o novo filme de Davi Pretto. De um lado, Continente tem uma longa introdução, em que garantir o mistério, e a atmosfera dele, parece ser mais importante do que construir algo a partir disso. Em certo ponto, parece que Pretto não irá encarar de frente o horror nem seus temas, deixando tudo passando ao fundo e a narrativa começa a inchar, se alongar, deixando apenas sugestões pelo caminho. Essa construção lenta, no entanto, leva ao outro peso que compensa imediatamente essa questão, a virada de chave que finalmente é frontal com todo o sangue, monstruosidade e crítica política se faz principalmente pelo uso das imagens. Pretto realiza um cinema de gênero que pouco vemos ultimamente, que não existe só para reforçar um tema social em seu texto, mas que o trabalha a partir de sua encenação. Leia mais.
48º - O Quarto ao Lado
Para lidar com a morte a partir da tensão entre suas duas protagonistas, Ingrid (Julianne Moore) e Martha (Tilda Swinton), a obra aproveita a excentricidade da figura de Swinton e o humor comum do diretor para que a finitude seja um desconforto provocativo à pessoa espectadora. O riso vem como uma válvula de escape do corpo que não sabe como processar bem a frontalidade com que Martha se relaciona e fala de seu estado de saúde e seu destino escolhido. Ingrid é esse sentimento inquieto, a escritora que acaba de expor ao mundo seu medo da morte e agora é confrontada diretamente com ela. Assim, Almodóvar delimita nesse espaço o que são as emoções e responsabilidades individuais, olhando o morrer como uma parte estranhamente comum da vida, um obstáculo a ser ultrapassado.
47º - Cidade; Campo
Com dois blocos que dividem, mas não separam completamente, Cidade; Campo se estrutura exatamente como o caractere gramatical que seu título indica, há uma pausa longa que torna cada história independente, mas as contrasta por algo impalpável. Mulheres recomeçam suas vidas em ambientes totalmente novos, lançam suas vidas em um espaço desconhecido e seus corpos necessitam adaptação, ao trabalho, ao céu, ar e habitantes ao redor, encontrando mais do que desafios práticos, enquanto são confrontadas por suas próprias naturezas. A fantasia tão comum à carreira de Rojas, aqui se apresenta pela mística humana em relação ao mundo, dos fantasmas que as assombram aos laços ancestrais encontrados, tudo é lidado com imensa sensibilidade pelo filme, travando jornadas íntimas para as protagonistas que estão em busca de si mesmas quando suas próprias essências parecem perdidas junto ao passado.
46º - O Senhor dos Mortos
A projeção de David Cronenberg em seu próprio protagonista começa uma relação que faz de O Senhor dos Mortos (The Shrouds) um filme estranhamente romântico, mas que também coleciona sátiras a uma sociedade deprimente em que o virtual consome o orgânico e todos estão completamente paranoicos. Karsh (Vincent Cassel) desenvolve maneiras peculiares de lidar com a morte de sua esposa, um luto que Cronenberg conhece bem, mas se o diretor faz filmes como sua forma de terapia, o milionário canadense inventa dispositivos funerários para observar sua amada em decomposição. O longa é ambientado em um universo estéril e vazio, os poucos excêntricos ao redor do protagonista pouco estranham suas práticas, assim, a única personagem de fora que é apresentada ao cemitério com câmeras ao vivo das tumbas e a todos os desabafos de Karsh, logo é removida, ou melhor, se retira rapidamente, afinal, ela não pertence a esse lugar. A encenação fria remete a um cinema e a um mundo em que o orgânico, o que é vivo e pulsante, está perdendo espaço para a artificialidade, um comentário nada novo na filmografia do pai do body horror.
45º - Saudade Fez Morada Aqui Dentro
A câmera se move solta, nas mãos, tremendo, um tanto imprecisa às vezes, perfeitamente habituada à energia tão própria dessa fase da vida que preenche a tela. Bruno pode ter 15 anos, mas sua ligação com a infância ainda é mais forte que a adolescência, essa que chega aos poucos, totalmente atrelada a uma drástica mudança em sua visão. A cegueira é dada como uma sentença sem prazo certo, mas nunca encarada como um foco trágico pelo filme, que se concentra muito mais em todo afeto que atravessa as relações de Bruno com seus amigos, familiares e comunidade. É fascinante essa escolha de abordagem, colocar um garoto em uma fase tão complexa da vida, quando se tem muito mais pela frente, muito o que se entender, aprender e enxergar, para que justamente sua visão seja removida completamente. É quando Bruno começa a compreender mais sobre si mesmo e os outros que é obrigado a se adaptar a outra forma de se relacionar com tudo ao seu redor e Saudade Fez Morada Aqui Dentro o coloca mais em um lugar de observador, um aprendiz do mundo, do que centro de todos seus temas.
44º - Arzé
Mira Shaib interessantemente consegue transpor para quem assiste seu filme todo um panorama da diversidade cultural desse lugar, em que cada bairro cruzado por Arzé (Diamand Abou Abboud) traz características próprias. De turcos até franceses, o Líbano é influenciado culturalmente por diversas nações e religiões, o que fica bastante claro pela forma como a protagonista se adequa a cada lugar que precisa visitar, trocando de roupas, acessórios e sotaque para que seja aceita e, principalmente, acolhida por cada comunidade. Em lugares assim, as pessoas ajudam seus iguais e não se importam muito com o que vem de fora, a centralização de culturas em bairros e pequenas comunidades formam essas redes e a esperteza de Arzé em se mascarar e misturar facilmente, faz com que ganhe a empatia de diferentes grupos, embora não acredite nem faça parte de nenhum deles. A jornada exaustiva dessa mulher se dá por algo bastante familiar à história do cinema, já que em 1948, Vittorio De Sica realizava uma das obras mais importantes que refletia outro país em crise, em que um meio de transporte próprio era a única forma de um pai sustentar seu filho, e sua casa, tornando o roubo da bicicleta o centro de uma tocante narrativa que ecoa até hoje nos amantes da sétima arte. Aqui a scooter comprada com muito esforço é a única maneira de entregar mais esfihas e só assim garantir um sustento melhor para a família, portanto, se estabelece a mesma lógica de Ladrões de Bicicleta, mas com um olhar feminino, de uma mulher forte e independente, em um país com maioria árabe, atravessando uma grande crise.
43º - Robô Selvagem
A animação de Chris Sanders foi a segunda mais bonita que vi em 2024, mas infelizmente não escrevi sobre.
42º - Motherboard
Quando Jim nasce é 2004 e o mundo ainda começava a entender a era digital, mas Victoria já sentia a necessidade de voltar a fazer filmes e capturava todos os seus momentos com uma câmera de vídeo. Ao longo dos anos suas filmagens se adequam ao momento até se tornarem o que hoje conhecemos tão bem e assistimos a todo instante nas redes sociais, os iphones tomam conta mas a linguagem de Motherboard conversa tanto com os anos 2000 que nenhuma imagem parece antiga demais, nenhuma resolução causa um grande contraste, Victoria se apropria da estética de cada breve época, e suas tendência, para construir um filme que fala com o tempo que passa e se altera de acordo com a vida. Enquanto conta sobre sua gravidez e o abandono do que nem chegou a ser um parceiro, é como se todo seu filme fosse sobre aquilo, o pequeno Jim capturado nos momentos mais doces de sua infância parece ser a única versão que existe, até que os anos mudem e suas inserções, do vídeo digital acelerado até efeitos adicionados em tela, produzam um menino cada vez maior e mais velho e, novamente, é como se apenas aquele momento fosse central. Impressionantemente, Motherboard se passa ao longo de 20 anos mas é realmente um filme sobre o presente, esteja ele onde estiver na linha do tempo. Cada imagem capturada e retratada por Victoria se torna central em seu documentário e tudo que importa é o que se tem naquele momento. Daí a importância de não apenas ter filmado tudo ela mesma como também montado, colocando suas intenções pessoalmente e intimamente em cada cena.
41º - Greice
Greice (Amandyra) é o que hoje chamamos de fanfiqueira, uma mulher que ficcionaliza a própria vida e trabalha dentro dos termos da juventude contemporânea. Suas aventuras românticas parecem uma sitcom, mas ao contrário das narrativas que habitualmente colocam furadas heteronormativas em sequência até encontrar o homem ideal, é Greice, ao mesmo tempo, a cilada e a boa paixão. Aliada do acaso, ela faz sua própria história e, assim, o filme não se constrói numa linha direta e reta, mas costura-se enquanto a protagonista vai desenhando seus desvios e suas mentiras se tornam realidades, concretas ou imaginadas pelos espectadores dentro e fora do espaço fílmico. Nós, que assistimos, somos tão deixados levar por essa contadora de histórias quanto aqueles que estão a seu lado e estes são peças fundamentais para elaborar seus roteiros. Greice não é ninguém sozinha porque todo enredo necessita de mais atores e assim como suas referências, não é a maldade ou a vontade de ganhar vantagem que move essa mulher, mas uma esperteza que a faz grande marinheira nesse mar difícil de navegar que é a vida.
40º - Dahomey
Dahomey inicia seu registro pelo ponto de vista de um objeto, marcado como número 26, o último na ordem de uma leva ínfima de outras milhares de peças ainda em poder dos franceses. Não apenas colocando a pessoa espectadora na escuridão dessas caixas e incertezas de pertencimento, mas também dando vida e identidade a esse objeto, uma voz que evoca sua presença ancestral e um texto que projeta sua importância nesse processo. A diretora cruza uma linha mística e fantasiosa para que não sejam as pessoas as protagonistas, mas os debates, levantados tanto pelos pensamentos fabricados da peça que narra o filme, quanto por toda a população de Benim que é confrontada pelo retorno dessa leva de obras roubadas. Diop não pretende então atestar o que esse resgate significa, mas operar como historiadora, registrando esse momento e como ele impacta a sociedade repleta de cicatrizes coloniais.
39º - Levados pelas Marés
Quando Guo Bin (Zhubin Li) avisa que quer tentar a vida em outro lugar, seu sumiço e falta de respostas nas mensagens de celular levam Qiao Qiao (Zhao Tao) a uma busca que atravessa cidades. Gradualmente, as cenas do passado que eram repletas de encontros sociais entre muitas pessoas e muito barulho, em uma trajetória praticamente musical que Levados pelas Marés (Caught by the Tides) propõe, vão se tornando sobre uma comunicação mais distanciada, sobre os silêncios e espaços vazios entre as pessoas. Qiao Qiao nunca diz uma palavra sequer, o que gera um espanto quando ela emite um barulho ao final do longa, um grito, mas seu rosto é perfeitamente capaz de dialogar por ela a todo instante. A mulher que se torna mais velha e mais madura conforme o filme atravessa o tempo, parece até o homem silencioso que caminha de Tsai Ming-liang, pois é sua jornada que retrata não apenas o tempo presente, mas também os espaços ao seu redor. Zhangke traça um caminho que vê as mudanças na China, a modernidade esmagando o mundo e o capitalismo transformando relações. O distanciamento imposto ao relacionamento é produto de uma busca afetada pelo estado das coisas, uma ambição econômica, e chegando na parte final do filme, o espaço que torna os ambientes silenciosos e vazios é resultado de ações coletivas, de uma resposta do tempo ao que vem sendo feito com o mundo.
38º - Shahid
A tensão entre o país de origem, que carrega histórias centenárias e influências marcantes em sua relação com a arte, e o país que a acolhe, possibilitando viver e trabalhar com alguma tranquilidade, é um dos caminhos que o filme percorre enquanto a Alemanha serve de cenário, largamente exagerado em suas burocracias, mas o Irã está sempre presente na dança, nas roupas, na cultura, na música e no debate sobre os muitos refugiados que não possuem a mesma sorte de Narges. Da mesma forma, o embate entre masculino e feminino e ficção e realidade, são forças fundamentais para essa obra que se faz abrindo totalmente seu processo para o público, é praticamente experimental, no sentido que diretora e equipe parecem usar suas próprias tentativas de como fazer um filme como parte indissociável do produto final. São as partes que normalmente seriam removidas do material bruto que constroem o todo, ainda que muitas vezes fique clara uma encenação programada, importa como tudo se une e é capaz de montar de forma eficaz o que a diretora quer dizer, afinal, cinema sempre é mentira, e abraçar essa ideia dentro do documentário para manipular e brincar com formas diversas de se expressar, demonstra o controle artístico de Narges dentro do descontrole que se passa dentro de sua narrativa.
37º - Dias Perfeitos
Da mesma forma que o filme não se concentra em uma crítica social, não se demora em compreender o passado de seu protagonista, não faz parte de sua proposta se aprofundar nas escolhas que levaram Hirayama a uma vida mais simples, nem olhar para a invisibilidade de sua ocupação e papel social com um caráter mais político. Wenders compreende esses elementos e sua importância no todo de outra forma, mais sutil, os utilizando para construir o fundo dessa sociedade contemporânea cada vez menos humana, mais distante e mais desigual, para que esse homem exista nela em busca de respiros de felicidade. Os dias iguais, compostos por ações calculadas e processos meticulosos não são pesarosos para Hirayama como são para Jeanne Dielman, as mudanças na rotina o abalam, mas não destroem seu estado meditativo a ponto de o tirarem do eixo, não há uma luta de engrenagem contra o sistema, mas uma tentativa de tirar o que há de melhor dos dias, com uma alegria bastante particular e a melancolia da complexidade dessa existência.
36º - Longlegs - Vínculo Mortal
Alongando a profundidade e distorcendo as imagens, há sempre a expectativa para o que está ao fundo, brincando com a observação que espera ver algo que não está lá, aumentando a apreensão a cada cena para um terror que estaria à espreita, mas na verdade está muito às claras. Perkins não esconde exatamente seu diabo, mas o mantém no mistério que garante o peso de seu imaginário, trabalha essa entidade pela crença mais simples, do maniqueísmo principal da humanidade, o bem e o mal do céu e inferno, o satã de chifres, do vermelho e do escuro, o Baphomet dos sacrifícios pagãos. Mas, a construção de seu horror confere a ele ainda mais poder pelo fato de nunca o desvendar, e nunca o usar como ferramenta de susto fácil, mantendo-o no fundo, por trás, na silhueta preta que preserva seu imaginário terrível. O medo e a tensão do terror de Longlegs vem assim como The Blackcoat’s Daughter pelo que não pode ser totalmente compreendido, a mitologia maligna primordial, o mal que não é descarado, mas se reserva e assombra. Assim, seu domínio da atmosfera é o grande feito que sustenta o filme e o faz um exercício de linguagem, de como os planos funcionam para manipular sensações.
35º - O Sabor da Vida
Sobram cenas em O Sabor da Vida em que os diálogos são escassos mas o silêncio mesmo é raro. A grande cozinha se enche de vida, em uma fotografia que puxa os tons quentes da luz do sol, tornando a atmosfera calorosa de forma emotiva, enquanto a câmera dança no ritmo dos personagens que andam de lá para cá com seus utensílios. Pouco é dito, mas o som é abundante, de panelas, pratos, facas cortando, fogo crepitando, água fervendo e as vozes só se escutam quando dizem algo referente ao preparo das comidas, é breve e objetivo, já que cozinhar é um ritual para Eugénie (Juliette Binoche) e Dodin (Benoît Magimel). Essa mise-en-scène clássica e romântica, bastante controlada pelo diretor, constrói uma relação em que a gastronomia se aproxima do cinema, é uma arte, com referências, estudo e grandes mestres, mas que depende de quem está no comando dominar as linguagens para criar resultados mágicos que se relacionem com quem os consome. Dividir esse amor pela comida, do seu cultivo e preparo ao saborear dos pratos, é o que conecta Dodin, o homem rico, e sua cozinheira que faz questão de manter seu posto. Não é algo trivial, muito menos raso, o gourmet exigente encontra nas mãos de Eugénie os diálogos que nunca foi capaz de ter em sua vida, a mulher fala sua língua e o compreende, ambos se entendem pelo sabor das coisas. O contorno desse relacionamento é todo pautado no prazer de cozinhar e comer, demarcado pela vontade da cozinheira de estar nos bastidores, como se aceitar ser a esposa a tirasse sua personalidade e poder de escolha.
34º - Garra de Ferro
O que Sean Durkin faz em Garra de Ferro (The Iron Claw) é seguir uma linha que gradualmente muda seu tom para expor aos poucos as dolorosas consequências de um sistema opressivo, principalmente pela masculinidade. O segredo para a grandiosidade e para o impacto que deixa no espectador está em como o filme não é um drama pungente logo de cara, mas constrói inicialmente uma história amorosa que ri de si mesma, e compreende o ridículo do exagero masculino, da exaltação dos corpos e do culto aos mesmos, do espetáculo das lutas que leva a violência a um nível cômico e da ingenuidade dos meninos que são quase gigantes musculosos de cuecas que não sabem nada da vida além de lutar e ser uma família. Essa narrativa calorosa envolve, aproxima, muito também pelo ótimo trabalho do elenco. Zac Efron dá vida a um Kevin doce na mesma medida em que é fisicamente forte, como uma casca grossa que é macia por dentro, seus olhos sempre revelam uma ternura, além de exalar toda a dor que esse homem carrega. Toda a relação entre os irmãos Von Erich parece ser unida pela proteção desse irmão mais velho, mas cada um deles possui características e personalidades trabalhadas individualmente, o que reforça toda devastação que virá no decorrer do longa.
33º - Megalópolis
Cesar Catilina (Adam Driver) o artista genial, brinca com o tempo, primeiro por trabalhar com a arte, algo que Coppola compreende muito bem, já que o cinema tem esse poder de imortalizar imagens, depois pelo amor, nesse lado romântico clichê e, ao fim, pela formação de família, o teste definitivo contra o tempo que é, por alguns pensamentos e crenças, ter filhos, dar continuidade à humanidade e a si mesmo. Essas ideias são a alma do filme que também vai brincar entre passado e futuro usando um espelho do império romano para ilustrar uma selvageria social de poucos, que se divertem em bacanais enquanto outros passam fome, em uma estética tão dourada que nem mesmo o vinho é tinto. O atestado definitivo que Coppola deixa com Megalópolis é que é preciso sonhar, seja em uma sociedade em colapso que busca soluções na utopia imaterial, mas, principalmente, em um cinema que perdeu essa capacidade, tanto que seu mundo imaginado parece ousado até demais para a maioria dos que vem o encarando. Se Julia (Nathalie Emmanuel), em dado momento, fecha os olhos para poder ver a ideia da cidade de Cesar, é porque a imaginação funciona melhor em nossas mentes, mas a sétima arte existe justamente para fabricar e projetar fantasias para que todos assistam de olhos abertos.
32º - Caminhos Cruzados
As barreiras burocráticas criadas pelo ser humano são também instrumento fundamental do que Levan Akın tece em sua tapeçaria, elas que separam dois países que dividem o mesmo solo, que determinam gêneros e rótulos e quais comportamentos são aceitáveis ou não, entre tantas outras coisas. Pequenas jornadas são contadas a partir do momento em que Lia e Achi entram na Turquia, determinados a encontrar Tekla, sendo sua ausência, portanto, fundamental para que o filme siga em frente e, em certo ponto, seria extremamente feliz se a senhora encontrasse a sobrinha, mas tudo que os personagens vão ganhando no caminho já parece satisfatório em algum nível. Se a moça que fugiu da Geórgia queria ser encontrada ou não, se está viva ou morta, parece uma resposta mais dolorosa de se chegar do que a jornada doce de Caminhos Cruzados propõe, em que o acaso vence o programado e a confiança que se estabelece nos contatos extrai o que há de mais humano e se coloca acima da incomunicabilidade dos diferentes idiomas.
31º - Os Enforcados
Regina (Leandra Leal) e Valerio (Irandhir Santos) iniciam a trama exibindo seu fetiche pela violência, mas uma simulada, controlada dentro de suas próprias regras para seu próprio prazer. O marido, na verdade, quer escapar da contravenção e do pouco dinheiro que entra, sabe-se lá como. A esposa ambiciosa quer a reforma da casa dos sonhos e vê no destino, e na sorte, a chance de abocanhar uma bolada. O lar em ruínas pelas obras é retratado, no começo, muito ao fundo do casal, visto bastante unido, até que essas estruturas desconstruídas passam a afetar a cumplicidade deles. Quase uma adaptação de Shakespeare com ares do cinema brasileiro dos anos 70, Coimbra ilustra o imaginário desse mundo de crime a partir de um cotidiano excêntrico, em que a violência é elaborada em tons cômicos, com uma montagem que martela os acontecimentos cada vez mais fora de controle. É recente o sucesso da série Vale o Escrito que, mesmo mostrando um lado sombrio de sangue e morte do Jogo do Bicho, é inevitavelmente engraçada, algo que o cineasta (que também assina o roteiro) abraça em sua forma mais exagerada e que não tem pretensão alguma de fazer críticas ou posicionamentos morais, apenas se divertir com um estado caótico das coisas.
30º - Grande Sertão
Grande Sertão: Veredas é peça fundamental da literatura brasileira, daí o desafio de Guel Arraes já nasce grande, e para dar luz a seu filme, o diretor e roteirista, junto com o gigante Jorge Furtado, coloca a obra de Guimarães Rosa em outro mundo, outra realidade, mas nunca se separa da literatura, pelo contrário. Grande Sertão se apropria do texto, da forma lírica como a história se dá e os personagens se comunicam, e fazendo isso, todos os atores se unem em um mesmo ritmo, na cadência poética do texto declamado, muitas vezes gritado, que pulsa como a velocidade do longa pede. O sertão agora é favela, verticalizada, um complexo cercado por muros em que construções se empilham e a fantasia não se distancia da realidade, mas também a utiliza para montar seu universo. As armas, o tráfico, policiais, milícias, interesses políticos, o crime e as balas perdidas, tudo remete a um morro carioca, mas sem a necessidade de se posicionar ou se rotular. Arraes aproveita o que faz parte do nosso mundo para arquitetar um imaginário dessaturado e distópico, dando dimensão ao sertão de forma que nem faça sentido pensar o que há além dos muros.
29º - Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida
Gael nasce em 2021 e a mesma tela que apresenta a ele o cinema de Ozu é a que capta muitas cenas de Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, graças a esses dispositivos e ao mundo digital, muitos aprenderam a se comunicar e dialogar questões importantes de suas vidas pelo vídeo. E no mesmo processo que uma gestante usa seu tempo antes do nascimento para preparar tudo, Bel e Sandro montam seu ninho e se preparam psicologicamente nesse processo mais complexo, utilizando o cinema para eternizar cada etapa, de um cenário terrível compartilhado com todos os brasileiros, até o universo tão particular dessa família se completando.
28º - Bramayugam
Em Bramayugam o jogo com a entidade mitológica que extingue uma família, remove seu poder e domina sua casa carrega algumas cicatrizes comuns ao cinema indiano, não se vê o crédito final sem que os europeus apareçam ao menos uma vez com suas armas de fogo para terminar uma tragédia anunciada. O medo das lendas, dos fantasmas das florestas e seres ardilosos, se fecha no encontro com a figura verdadeiramente perigosa, que esmagará os mais desafortunados primeiro, sem chance de revide. A fuga da escravidão dá de cara com outra prisão. Trabalhando com o preto e branco nesse espaço limitado, a mansão decadente parece cercada por um campo de força invisível, uma armadilha no meio do nada, removendo a profundidade na escuridão para lidar com o que está além do campo, sons ao longe, histórias do passado e portas trancadas, constroem o imaginário do homem passivo e vulnerável que guia o espectador nesse mundo.
27º - Dying - A Última Sinfonia
A morte não vem com rodeios em Dying - A Última Sinfonia, muito menos com floreios. Encarar a humanidade atrelada a uma longa caminhada até o fim é parte crucial da observação dividida em capítulos e pontos de vista que Matthias Glasner propõe. Por isso, abrir o filme com uma mulher idosa suja e jogada ao chão não é um olhar que pode ser classificado como simplesmente degradante, mas pelo humor empregado no longa, que dá alívio ao pesar das situações, vê-se com naturalidade uma fase da vida em que a casca começa a dar sinais problemáticos na operação. A relação do casal Lissy (Corinna Harfouch) e Gerd (Hans-Uwe Bauer) abre os muitos capítulos da obra estabelecendo prontamente seu tema, a morte e como as pessoas lidam com ela de diversas perspectivas, e dando um tom que permite à pessoa espectadora respirar com alguma tranquilidade, já que a densidade da trama se mostra trabalhada muito costurada a uma leveza. É permitido que se ria da tragédia e que o espanto com a sinceridade seja cômico também, estamos todos morrendo, afinal.
26º - Ao Contrário
O humor inteligente e elegante de Ao Contrário tece uma análise das convenções sociais, seja da união que deve ser propriamente legalizada e celebrada ou da separação que precisa ser muito bem contextualizada, como se uma relação entre duas pessoas, na verdade envolvesse também todos os pais, irmãos, amigos e vizinhos. O privado se torna público a partir do momento em que uma decisão íntima deve ser dissecada a cada um que a precisa ouvir. Fascinante, então, que se estresse esse ponto, o leve a uma exaustão que coloca os protagonistas em uma crise que pouco é sobre a festa, o ponto que mais chama a atenção de todos, mas que é muito mais uma distração da verdadeira questão, a certeza que há sobre o fim de uma história de 15 anos.
25º - Alien: Romulus
O trabalhador explorado em combate com o sistema para enfim encontrar seu lugar ao sol. A trama de embate alienígena de Fede Álvarez, que se conecta em diversos pontos ao restante da franquia, é sobretudo uma jornada de pessoas escravizadas por interesses capitalistas que destroem o ambiente ao seu redor enquanto roubam seus preciosos tempos dia após dia. Qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência. Para escapar desse planeta cinza, sufocante e dessa lógica exploratória cíclica, homens e mulheres precisam de um intermediário que fale a língua das máquinas e, burlando algumas regras, se colocam em um campo fora do espaço habitual, sendo lançados em uma nova dinâmica distante da grande empresa que os escraviza, porém ainda afetados por sua influência. Nesse mundo em que pessoas são mão de obra obrigatória e humanos artificiais, androides, são vistos como objetos de última classe, praticamente inimigos que obedecem ordens sem reflexão, aliens grandes e pequenos remetem constantemente a coisas muito orgânicas: genitálias.
24º - A Filha do Palhaço
Assistir a Joana (Lis Sutter) entrando no lugar em que o pai (Démick Lopes) faz sua apresentação como Silvanelly é como a observar adentrando um novo mundo, de luzes e cores que ela desconhece, com a típica cara fechada que a adolescência nos reserva. Esse encontro distante que se aproxima aos poucos durante o longa, faz de A Filha do Palhaço um exercício que busca na construção do laço entre pai e filha um olhar pela perspectiva de quem errou e quem se feriu, no pequeno universo entre ambos que descarta os julgamentos externos, importa o que Joana sente e como Renato pode se redimir, como esses dois podem se conhecer 14 anos depois e aprenderem seus papéis, em uma paternidade fora dos moldes tradicionais. É a doçura e a sensibilidade da mise-en-scène de Pedro Diógenes que fecha o espectador nessa reconstrução afetiva e torna qualquer tentativa de romper a nova chance dos dois se conectarem, dolorosa. Todo o passado e os problemas que existiram, de um lado pelo abandono que Joana passou e, do outro, de toda uma nova vida que Renato encontrou ao descobrir melhor sua sexualidade e o amor, são digeridos pelo agora, da garota jovem que encara frontalmente o pai, sem medo de dizer o que gostaria de perguntar e do homem que, confrontado, é obrigado a descobrir como se encaixar nessa figura paterna, sem perder sua própria forma de viver. Assim, rancor e perdão cabem apenas a Joana, o espectador fica entregue a esse novo amor surgindo, construído a cada nova interação, segredo, medo e conflito, torcendo passivamente para que esses dois não se separem mais.
23º - Memórias de um Caracol
Elliot poderia seguir em frente deixando seu rastro de melancolia que enxerga na vida um realismo muito pessimista, encarando objetivamente todas as tristezas que vem no pacote, mas Memórias de um Caracol aproveita a mágica do cinema, uma arte que corre nas veias da família de Grace, para salvar nossa esperança de viver nos últimos minutos. Ver o pequeno anel de caracol brilhando quando Gilbert aparece na primeira exibição do filme da irmã é o lampejo de alegria mais adorável que senti nos últimos tempos. Mesmo mundos de tons bege e preto podem reproduzir felicidade, já que cada particularidade é o que torna algo especial.
22º - Salão de Baile
O que Juru e Vitã fazem é levar as câmeras para dentro dos salões de baile Brasileiros, mostrando como o ballroom se adaptou ao nosso país, principalmente ao Rio de Janeiro contemporâneo. Dos anos 80 pra cá muita coisa mudou, outras formas de existência foram ganhando espaço, mais pessoas tiveram a oportunidade de se compreenderem dentro de suas sexualidades e gêneros e a sigla LGBTQIA+ cresceu, então o documentário não busca apenas explorar como esse cenário se dá em outro país, mas também, como ele aceita ou não todas essas mudanças. A forma como isso é feito só poderia ser acessada por pessoas que conhecem aquele universo em sua intimidade, falando sua própria língua e transitando com suas lentes como grandes conhecidas, nunca como observadores estranhos que analisam os espaços cuidadosamente.
21º - Malu
O trauma geracional de mulheres na mesma família é trabalhado por Freire de forma visceral, sua obra expõe e vira do avesso os conflitos, não deixa nada entalado na garganta, permite que suas personagens gritem, extravasem o que vem à mente, sem filtros nem limitações. Assim, os confrontos saem sempre de controle, é um filme que vai de zero a cem em segundos, em cenas que se começa rindo, logo a angústia toma conta. Quando Malu parece peculiar, mostra em suas palavras um lado narcisista. Há sempre essa quebra, uma montanha-russa em que a empatia pela complexa protagonista anda de mãos dadas com um grande desconforto por seus traços mais detestáveis.
20º - Motel Destino
Mesmo na morte trágica, provocada por um deslize do acaso, Karim busca mais vida do que pesar em sua encenação, mais luz do que escuridão, obrigando Heraldo a encarar sua reviravolta dolorosa às claras. O jovem que só quer seguir em frente, buscar novas oportunidades longe do nordeste, tem seu futuro colocado em pausa por ações que não tem controle, seja pela chefe ou no fatídico encontro com Isabela Catão, que nos poucos minutos que está em cena, é determinante para a jornada do personagem central, alterando para sempre sua história. O encontro de Heraldo com Dayana (Nataly Rocha) no motel abre uma fenda no espaço-tempo, um lugar em que ambos - pessoas que querem viver mais do que as possibilidades em que estão atrelados no momento - podem explorar seus desejos e existirem em uma pausa descolada do universo exterior até que encontrem um caminho para fora.
19º - Eros
Quando se pensa nessa proposta de pessoas filmarem seus momentos em motéis, talvez o primeiro palpite do resultado seja puramente sexual, mas Eros consiste em muito mais do que isso, das interações humanas que acontecem nesse espaço arquitetado para encontros eróticos, atravessando questões morais, emocionais, de fé e de fetiches. No entanto, sua grande força mora no fato de que todos se tornam diretores, cada personagem com seu próprio dispositivo controla a trilha sonora, o enquadramento, a qualidade da gravação, sua abordagem, enfim, toda a forma e narrativa é blocada e se altera conforme os objetos mudam. Aqui, as pessoas controlam suas imagens e como querem ser vistas, provocando diferentes objetivos e revelando suas próprias vontades de se mostrarem como seres desejáveis e sexuais. O poder de manusear a câmera os entrega a possibilidade de não apenas colocar em pauta as questões que lhe forem mais relevantes mas, principalmente, de dirigir como o mundo os verá. Em um dos recortes, a profissional do sexo Barbara declara pensar que o motel é um lugar para garotas de programa e usuários de drogas, mas o que o documentário revela é o exato oposto, que esse é um lugar de muitas coisas, em que os muitos cubículos fechados contém universos particulares escondidos, abertos pela ideia de Rachel Daisy Ellis para uma investigação que se dá pelo sexo, mas o vê de forma tão natural quanto dividir um prato feito depois do gozo.
18º - Rivais
A própria encenação de Rivais é o sexo, o espectador assiste, por pouco mais de duas horas, três pessoas indo das longas preliminares até o clímax final. Não é o esporte apenas que promove essa relação entre eles, mas cada contato, conversa e olhar, cada ida e volta no tempo, com cortes sempre muito bem calculados para que a expectativa aos finalmentes aumente. Sempre que os personagens parecem perto de efetivamente aquecer o contato de seus corpos, o filme corta, muda de tempo ou alguém sai de cena, a interação muda e as preliminares continuam. Guadagnino joga também com nossos corpos, com nossa ânsia, construindo gradativamente uma transa fílmica em que o gozo parece nunca chegar, sempre rondando, se aproximando e chegando cada vez mais perto, mas guardando o real clímax para o final. Aqui, o maior tesão é ser um vencedor, e cada ponto perdido, cada erro e incompetência dos atletas é quase uma broxada, sempre projetadas por meio de Tashi (Zendaya), a condutora dos desejos.
17º - Bird
A encenação preza pelo ar, pelos ares ao redor das cenas, com uma câmera livre, agitada, acompanhando personagens que estão atrelados a uma ideia mais complicada de liberdade, a de não ter opção além da vida solta que possuem. Juventudes negligenciadas são parte crucial da obra de Arnold, que agora retorna às periferias britânicas para observar o amadurecimento ciclicamente abandonado. Adolescentes carregam o despertar sexual apressado como máscara de maturidade, formam famílias aos 14 anos, compõe um sistema que se alimenta, é autossuficiente em sua miséria, por sempre garantir que a próxima leva de crianças será tão abandonada quanto a última. Assim, Bug (Barry Keoghan) não é a caricatura simplista de um péssimo pai e um homem terrível, mas um jovem que teve filhos cedo demais e é produto desse mesmo ambiente negligente. Bailey (Nykiya Adams) vive uma fase importante enquanto mulher em desenvolvimento em meio a um mundo bastante duro, com homens imaturos ao seu redor e pouca escolha do destino, observando outras, como sua mãe, serem vítimas de violências. É assim que a inocência do olhar constroi a fantasia, apresentando Bird (Franz Rogowski) com uma corporeidade que transmite segurança, o ideal de proteção e confiança que uma menina de 12 anos não possui mas deseja. A instabilidade ao redor de Bailey é dada com tanta delicadeza, dessa magia do conto juvenil, da fábula, mas não esconde a brutalidade de seu universo, a realidade cruel por uma visão ainda tão inexperiente.
16º - Abril
O que pode ser descrito como um estranhamento aos planos alongados e a toda essa encenação rígida e fria, é também um motor que faz de Abril um filme de terror mais do que um drama focado em personagens. O corpo feminino é retratado em diversas formas, de sua força, por exemplo, na cena de parto que abre o longa simplesmente filmando de cima e sem cortes, um bebê nascendo pela vagina. Em sua vulnerabilidade, por tantas vezes que vemos Nina nua em cenários escuros e tristes, ou quando o aborto é filmado não de forma frontal, mas concentrando o ponto de vista nas mãos que se seguram apertadas enquanto a voz da médica avisa sempre que haverá dor. E, muitas vezes, colocado em situações de perigo, em que homens são ameaças iminentes. Nesse lugar em que o direito ao aborto não é garantido e em que meninas e mulheres adultas não tem poder de controlar quando desejam ou se desejam engravidar, casar ou ter prazer, Nina opera enxugando gelo, dando contraceptivos em segredo, interrompendo gestações indesejadas e vindas de estupros, sem saber como melhor resolver as situações em que se envolve.
15º - Sorria 2
Os filmes de maldições que seguem passando de um para o outro são largamente conhecidos no cinema e já foram trabalhados de inúmeras formas, o que é fascinante neste capítulo totalmente focado em uma protagonista popstar é que ainda que exista essa consciência da dinâmica basal, a abordagem dilacerante que se dá com a cada vez mais deteriorada Skye Riley (Naomi Scott) tanto torna irrelevante qualquer cadeia que se dê antes ou depois da hospedeira atual, quanto amplifica o efeito da entidade que depende, inevitavelmente, dessa busca incessante pelo próximo corpo. Sorria 2 é sobre Skye e seus traumas individuais, mas não da forma mais óbvia e direta, a dedicação do longa de construir e analisar a protagonista é fundamental para seu impacto muito bem executado, porém, é possivelmente o feito de colocar a pessoa espectadora no lugar mais empático possível com a cantora que não torna sua personalidade e transtornos muletas dramáticas simplistas, mas elementos de uma estrutura bem pensada para uma armadilha cruel, tanto com Skye quanto com quem assiste.
14º - A Primeira Profecia
A lógica de que para se contar a história antes do nascimento do anticristo deve se retornar ao útero torna A Primeira Profecia uma obra bastante próxima na linha do tempo e com espaço para colocar o feminino em destaque. São os corpos de mulheres, suas ações e opressões que preenchem a narrativa, enquanto os homens se tornam acessórios à trama, instrumentos que facilitam uma coisa ou outra. Mas o mais fascinante é como Stevenson demonstra tanta consciência para trabalhar no terror, fugindo de grande parte do que vem sendo feito atualmente, com um olhar que não é totalmente fresco, mas com paixão pelo gênero, com vontade de fazer horror.
13º - I Saw the TV Glow
Se World’s Fair colocava o mundo dentro das telas como algo quase perigoso que transformava sua personagem, em I Saw the TV Glow é o que está ao redor delas o simulacro ameaçador. A geração deprimida e deslocada da vez é representada por dois jovens em idades diferentes, Owen (Ian Foreman/ Justice Smith) e Maddy (Brigette Lundy-Paine) que se conectam por meio de uma série sobrenatural que parece tirada da mente de David Lynch, mas mais do que isso, a grande identificação vem da melancolia que arrasta suas vidas e os coloca na mesma sintonia, banhados pela luz rosa que Maddy já compreende e se sente tão parte, enquanto Owen começa a entender mas reluta a se entregar.
12º - Segredos de Um Escândalo
Haynes se afasta da espetacularização para se colocar atrás de uma barreira de representações da vida real. É o fascínio da atriz (Natalie Portman), seu olhar que procura copiar gestos e aparências, que leva o espectador para dentro daquela história, ou o mais próximo que ela consegue, e quer, chegar. Ainda que possua acesso à intimidade dessa família construída de forma completamente absurda, Elizabeth se atém a conhecer apenas a camada mais superficial de sua personagem, seu jeito de falar, seu cabelo ou sua maquiagem, e se direciona a tentar experimentar suas vivências, o desejo por Joe, por exemplo, sem compreender realmente o que se passa dentro daquela mulher. Assim, Haynes nos prende em um jogo de predadores e presas pelo que faz das pessoas os personagens mais instigantes de serem observados, a complexidade moral, mas nunca permite que essa seja desbravada em sua profundidade, tanto para Gracie quanto para Elizabeth, que se torna nosso próprio objeto de fascínio. Da mesma forma, o filme aumenta os pequenos momentos.
11º - Pobres Criaturas
Bella é como uma princesa de contos de fadas, mas também uma herança do Frankenstein de Mary Shelley, dominada por homens por conta de sua inocência, mantida em um mundo de fantasia e dada em casamento por contrato, mas também, resultado de um experimento de um cientista que não levou em conta as emoções e sentimentos que sua criatura desenvolveria e como se daria seu encontro com o mundo externo. Mas Bella é uma mulher, e, ao contrário daquele que demandava a Victor Frankenstein uma companheira, ela busca explorar o mundo por si mesma. Ocorre que sua ingenuidade, atrelada à idade mental que pode carregar, é um imã para homens que querem uma presa fácil de ser dominada. O mundo fora da bolha preto e branca em que Bella era mantida e vigiada, se torna colorido e imenso, em uma fantasia criada por Lanthimos usando efeitos que enchem os olhos. Observamos então cada pequena descoberta de Bella, enquanto ela se liberta e aprende a viver além das amarras da sociedade e das crueldades humanas.
10º - Red Rooms
Em tempos de obsessão por crimes reais, imagens fabricadas e inteligência artificial, Pascal Plante cria uma das protagonistas mais interessantes dos últimos anos para se apropriar do controle das imagens e atravessar a linha que prova a materialidade dos fatos. É fascinante como durante quase toda a duração de Red Rooms é muito difícil ter alguma certeza sobre as atitudes de Kelly-Anne, ainda que ela não se permita ser misteriosa 100% do tempo, abrindo-se para outra mulher ainda que respeitando suas limitações. A modelo/ hacker é obcecada por um caso que depende inteiramente de imagens, que provavelmente nem existiria caso essas não fossem encontradas e que não pode ser solucionado sem novas imagens. É a captação da figura do assassino em vídeo que garante a trama e o constante atravessamento de Kelly-Anne nos limites da tecnologia e internet para obter imagens acaba por apagar a sua própria. Quando as fotos da protagonista deixam de existir e sua presença online é deletada, sua própria existência desaparece, na mesma medida em que o olhar capturado do vilão é o que o faz existir. Um dos melhores thrillers dos últimos tempos que caminha sempre nas complexidades, longe de respostas simples ou óbvias e que respira o momento presente e suas complicações além da realidade.
9º - No Other Land
O jornalismo e o ato de registrar se tornam munições e escudos, o cinema vem como ferramenta para que o que ocorre em Masafer Yatta chegue a mais pessoas. O intuito do coletivo que conduz No Other Land, em alguma das cenas, parece ser que esse impacto chegue aos Estados Unidos, o que é muito mais complicado, mas em diversos festivais como Berlim, CPH:DOX, Visions du Réel, entre outros, e mesmo na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o documentário foi premiado, atingindo com seus relatos grandes públicos que talvez não chegariam sozinhos ao trabalho escrito desses ativistas.
8º - Filhos
A observação provoca, no limite entre um possível questionamento de quem seria o verdadeiro vilão nesse cenário, mas, mais do que isso, a problemática ética de usar um aparato do estado que poderia reabilitar pessoas, para as condenar sistematicamente em uma justiça pessoal e individual. Quando Eva passa do ponto, cruza a linha das pequenas atitudes para plantar drogas e armas, o que acaba em uma agressão física, perde o controle em suas ações e tenta recuar, mas é tarde demais. O jogo de poder se inverte e quem pega o controle para brincar é Mikkel. Se em todo o filme as imagens criaram uma tensão absurda entre ambos, ressaltando a ausência de barreiras físicas nas cenas em que os dois se colocam próximos e a ameaça à integridade de Eva grita silenciosamente, isso se torna ainda mais evidente a partir do momento em que o detento começa a chantagear a mulher.
7º - Queer
O universo observado no filme, construído de forma fantasiosa mesmo antes de cruzar realmente uma linha surrealista, parece uma outra realidade, uma representação de mundo em que homens homossexuais expatriados no México bebem o dia inteiro, todos os dias, flertam em bares e festas, encontram alguma cumplicidade uns nos outros, mas são, inevitavelmente, solitários e melancólicos. Destaca-se o estilo que Guadagnino emprega para construir esse lugar, pela artificialidade que reforça os cenários de estúdio, pelas luzes, cores, fachadas e por como a fotografia parece limitar o céu a um ponto que fecha seus personagens em uma redoma quadrada de uma realidade fabricada. É em todo esse contexto histórico, estético e social que William Lee (Daniel Craig) é retratado como um homem muito só, buscando nos vícios o encontro de si mesmo, um protagonista sem terra, sem origem, mas com um destino arrebatador à sua frente.
6º - Oeste Outra Vez
Os símbolos do faroeste são ressignificados, a virilidade masculina perde força, ninguém acerta nenhum tiro, os assassinos são capengas e um tanto patéticos. Repetem aos montes a vontade de encontrar uma mulher para suprir as coisas práticas, cuidar da casa, fazer comida, preencher um espaço no lar e ao lado de cada um, mas só encontram companhia mesmo nos bares e copos de bebida, por vezes até uns nos outros.
5º - Furiosa: Uma Saga Mad Max
Se em Estrada da Fúria era quase impossível respirar, com apenas pequenas pausas para organizar e compreender uma sequência caótica atrás da outra, Furiosa: Uma Saga Mad Max não perde completamente essa paixão pela ação descontrolada, mas a alterna a momentos desacelerados em que a precisão se coloca acima do conflito frenético. Taylor-Joy é silenciosa, seus olhos dizem tudo, e eles mesmos se colocam frequentemente mirando, buscando acertar algo, encontrar soluções e alvos exatos, não é que Furiosa não tenha sido sempre inteligentíssima ao operar suas máquinas e armas no meio da guerra, mas essa jovem protagoniza momentos em que todo o raciocínio é colocado enquanto respiramos junto a ela, como sua mãe faz nas primeiras sequências. E isso está quase sempre aliado a alguma emoção, uma pessoa por quem se sente afeto está em perigo, então a precisão é colocada em foco para minimizar os riscos, ou o alvo da maior vingança se esconde, então a mira facilita esse encontro. É tudo mais localizado agora, Miller consegue tanto engrandecer seu universo, quanto olhar para ele por um microscópio buscando detalhes, algo que antes morava muito mais em uma ação megalomaníaca em que personagens iam sendo mortos e despedaçados pelo caminho porque o todo era muito maior e o caos mais importante.
4º - Guerra Civil
A lógica básica de Guerra Civil se aproxima do filme de apocalipse, com um grupo se unindo para atravessar do ponto A ao ponto B, no entanto, o objetivo final parece algo muito distante durante o processo, é sempre o agora que interessa mais. Se o costumeiro nesse tipo de filme, unido ao road movie, é o sobreviver a qualquer custo para se chegar ao outro lado, aqui os personagens veteranos encontram problemas, mas é a novata Jessie (Cailee Spaeny) que apela à tensão da morte constantemente. O foco de Lee e Joel é sempre muito certo, de forma que sua humanidade parece quase perdida, são apenas operadores de suas profissões, fazendo o que precisa ser feito para fotografar ou escrever sobre o momento certo. É o encontro com essa nova dinâmica, da jovem que descobre esse mundo aos poucos, com o velho (Stephen McKinley Henderson) que já se despede dele, que evoca o que restou da alma assombrada de Lee. Mas se tem algo que o filme deixa muito claro, é que se desviar do objetivo do registro é o que faz o espírito quase invisível passando pelas balas, se tornar um humano de carne e osso e ser atingido. A empatia, o ato de salvar o outro, de se importar com alguém, é a sina dos jornalistas.
3º - A Substância
Elisabeth Sparkle vive de sua imagem, mas muito apegada a um passado, a estrela na calçada da fama que cria uma introdução muito interessante sem precisar alterar o ponto de vista, revela exatamente a essência da personagem, alguém que já foi relevante e brilhante e, por isso, tem seu nome registrado, mas se torna menos importante aos poucos, só mais um pedaço da história do cinema e da televisão que não chama tanta atenção. O filme de Coralie Fargeat vai desse lugar mais comum e simples de se relacionar, a boa e velha história do moedor de carne que é hollywood, para se tornar gradualmente mais absurdo e desesperador, mergulhando de cabeça no terror que é ser mulher e envelhecer nesse mundo. Vamos de personagens que pouco falam, atrizes que se calam e processam informações, até gritos angustiantes de horror. Usando os espaços, A Substância por vezes abre suas cenas para isolar Elisabeth em grandes quartos vazios e em outros momentos usa closes muito próximos em seus personagens para distorcer e desespacializar. Somam-se a esses elementos o trabalho de som e trilha sonora que dão peso e impacto a cada choque corporal. É um longa que busca o desconforto de estar nessa pele, o desespero de ser mastigada e cuspida por esse trabalho que retira a humanidade, sobrando apenas o monstro.
2º - Agarrame Fuerte (Don’t You Let Me Go)
Agarrame Fuerte é um título muito mais bonito em seu idioma original, transmitindo exatamente o calor que essa obra singela passa em pouco mais de uma hora. Elena é uma personagem tão apaixonante que me pego ao final também sentindo sua falta, tudo por como as câmeras emulam o olhar amoroso de Adela para ela, seu sorriso, sua forma de se mover, seus cabelos vibrantes enrolados em um coque desajeitado, seu jeito de adoçar o suco ou maquiar as amigas. Cada pequeno momento é uma lembrança passada que se torna nova, uma despedida que é também um reencontro, uma saudade que se nega a encontrar o mundo real e chato, busca viver o quanto puder nessa fantasia de imagens que abraçam e aquecem.
1º - Jurado Nº 2
Cada cena é arquitetada para que a incerteza, o julgamento ou a culpa, pesem na balança, com um cinema que ousa questionar, se valer da complexidade do que não é dado, firmado, comprovado e validado, que saboreia a dúvida, as nuances humanas de caráter e a ideia de que entre o certo e o errado existem um milhão de possibilidades. Então, o protagonista todo construído milimetricamente para ser o bom moço, dos olhos claros até cada gesto cuidadoso, com planos que fazem questão de destacar suas boas ações, é inserido no banco do júri na posição de julgamento, de quem decide o destino de um acusado, no entanto, essa posição é radicalmente alterada. Jurado Nº 2 não apenas confronta o sistema o observando por dentro, como diversos filmes de tribunais, sendo o mais clássico 12 Homens e uma Sentença, mas coloca o próprio culpado em posição de definir, manipular e balançar os processos. A descoberta dessa reviravolta (com pitadas de A Mulher Sem Cabeça) se dá ao mesmo tempo para Justin e para a pessoa espectadora, garantindo que o desenrolar seja uma observação quase imediata de respostas de humanos ao que cabe em suas crenças e morais, e que jamais se curva ao que é fácil, simples ou absoluto.
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