Retratando o marasmo e os desafios éticos de um jornalismo aliado ao governo, Assel Aushakimova demonstra uma verdade que se esconde por trás das propagandas
Assel Aushakimova foi a primeira diretora a trazer personagens queer em um filme no Cazaquistão, em 2019 com Welcome to the USA. Agora, ela repete a parceria com sua protagonista Saltanat Nauruz, mas vivendo uma jornalista que se relaciona casualmente com o câmera casado, e tem uma irmã lésbica e ativista. A matéria que dá nome ao filme é, estranhamente, exatamente o que parece, uma iniciativa bizarra do governo que colocaria pessoas para pedalar e jogar xadrez ao mesmo tempo, juntando atividade física e mental. É com esse tipo de exemplo que Aushakimova mostra o trabalho jornalístico de Dina sendo completamente desperdiçado em propagandas vazias do governo. Sua ocupação é basicamente definida por atividades sem sentido e que quase sempre precisam ser maquiadas e encenadas para resultarem em algo que possa ser filmado e editado para a televisão. Assim, Dina precisa que pessoas atuem, façam de conta que aqueles exercícios realmente são usados pela população e, com sua habilidade de escrever bons textos, floreia tudo que pode para garantir uma matéria que funcione. Do outro lado, há sua irmã, lésbica, de cabelos curtos e coloridos, tatuagens e uma postura combativa, o oposto do visual sóbrio da protagonista, mas com uma determinação semelhante, usada para outros fins. Ainda que tudo se estruture nesses pólos, Dina não é contra nada que sua irmã faz, pelo contrário, a apoia e a tira das enrascadas com a polícia. Mas é nessa dualidade de posicionamentos que Bikechess (vencedor de melhor filme internacional em Tribeca) coloca que a realidade retratada pelo jornalismo aliado ao governo, é apenas uma encenação propagandística, enquanto existem pessoas protestando, sendo presas pelas menores coisas e até morrendo nas mãos das autoridades.
Aushakimova escolhe focar na jornalista, de forma que o espectador também fica um pouco distante do que realmente acontece nas ruas. Na delegacia o responsável diz que poderia prender Dina por simplesmente estar com cheiro de bebida, no protesto da irmã, apenas as que têm cabelos curtos e coloridos são detidas, nada é escancarado, mas existe uma sombra crítica de que algo está muito errado, e somos quase sempre mantidos nesse mesmo véu do marasmo que a televisão aliada ao governo capta. O país vizinho da Rússia, parte da antiga república soviética, sofreu em 2022 com protestos que resultaram em milhares de prisões e dezenas de mortes, ainda é um lugar que sofre para ser uma democracia jovem, com eleições questionadas mundialmente, e que pouco se houve falar na grande mídia por aqui. Portanto, quando a irmã da protagonista beija a namorada na rua e um carro para ao lado delas, há uma tensão difícil de explicar, resolvida em segundos quando compreendemos que se tratava apenas do veículo que foi buscar a mulher, mas entre o desconhecimento que alguns possam ter e a abordagem de Aushakimova, é sempre complexo entender se existe algo mais obscuro acontecendo por trás desse mundo tedioso que Dina precisa televisionar.
Bikechess nos dá uma falsa tranquilidade, assim como as iniciativas inúteis mostradas nos jornais fazem com a população. Até certo ponto, pela dinâmica entre Dina e sua irmã e como tudo se dá, não é esperado que o inofensivo protesto para desmistificar a menstruação resulte em algo tão violento e, enquanto isso, em um domingo qualquer, a protagonista segue reportando mais uma bobagem para ganhar a vida. Entre muitos momentos de espera, até as encenações para finalmente produzir algo, o longa segura nosso olhar nesse marasmo ao mesmo tempo em que em algum lugar, existe algo que verdadeiramente precisa ser noticiado, investigado e receber atenção do público. Mas o que está prestes a acontecer com a irmã de Dina não será visto, nem por nós, nem pela população, nem pela jornalista, permanecerá oculto enquanto a televisão exibe mais uma matéria sobre um governador plantando árvores e soltando coelhos. Faz algum sentido com a proposta, mas ainda deixa um gosto agridoce por como isso é abordado. Existe uma sutileza na forma como Assel Aushakimova elabora sua crítica, muito por esse humor que dá leveza na atmosfera absurda e apenas sugere, sem expor frontalmente, o que realmente é revoltante. Ainda que nem tudo se elabore consistentemente, é capaz de plantar questões que crescem além do filme.
Nota da crítica:
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