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Tudo Que o Céu Permite e Longe do Paraíso — Existe um lugar no céu para as mulheres?

Um olhar sobre as intenções, os debates levantados e o papel da mulher na obra de 1955 de Douglas Sirk e no filme de 2002 de Todd Haynes


Tudo Que o Céu Permite

Ao pensar as obras de Sirk e Haynes, o que mais me chama a atenção é a diferença na intenção dos diretores ao contarem histórias muito parecidas, já que o filme de 2002 é inspirado no melodrama dos anos 50. Mas se a base é a mesma, os dois vão para lugares muito diferentes, além da premissa. A ideia principal, de uma sociedade de aparências da década de 50, agarrada nas mãos do patriarcado com famílias bem tradicionais formadas por mães que cuidam da casa, dos filhos e das atividades sociais, maridos que trabalham o dia todo e formam suas próprias sociedades e vizinhanças que são comunidades ativas nas vidas de todos, representando suas únicas relações, em opiniões, julgamentos e fofocas, se mantém a mesma em ambos, porém com a diferença de que Haynes estava em outro mundo, em que podia olhar para o passado e incluir novas críticas e ideias. Na verdade, a intenção de Sirk me parecia ser muito distante de uma crítica, ainda que seu filme abra esse caminho, é algo que nasce no espectador, possivelmente naqueles que tiveram contato com ele em outro tempo, como foi meu caso.


Quando Sirk retrata o mundo ao redor de Cary Scott, sua intenção está muito mais na ideia de que o maior inimigo daquele amor são os outros, ou melhor, a opinião dos outros. O julgamento alheio se torna o vilão que limita aquela mulher em seu imaginário, quando na verdade não existem impeditivos. Seu romance com o homem de outra classe social é comentado na comunidade e visto com olhares de deboche e reprovação, mas no fim, tudo não passa de um obstáculo dentro dela mesma, basta ignorar os outros para seguir sua vida e encontrar a felicidade. Porém, todo o contexto acaba escancarando o patriarcado como o verdadeiro vilão, pelos filhos que se sentem no direito de interferirem no destino da mãe por meros caprichos e pela vizinhança preconceituosa e invejosa que recrimina a diferença social do casal, representando um olhar da sociedade como um todo, que cria regras de como uma mulher pode ou não viver sua vida.


Essa mesma problemática está em outros melodramas como As Pontes de Madison (Clint Eastwood,1995) e Amor à Flor da Pele (Wong Kar-Wai, 2000), para citar apenas dois exemplos, nos quais o maior foco também não está na crítica social, mas no amor impossível que só é realmente impedido por uma decisão de ficarem juntos ou não, de largar tudo e viver o romance “proibido”. Porém, por trás disso tudo, paira uma sociedade patriarcal que controla as mulheres, mulheres casadas, nos dois casos citados, que precisam lidar com suas reputações sendo arrasadas pelas comunidades em que vivem e abdicarem da vida que construíram para começar tudo do zero com o novo relacionamento. Em resumo, em todos esses filmes a mulher é quem deve dar o maior salto de coragem e, no fim, largar tudo significa mais uma vez atrelar seu destino a um homem, mudando apenas o indivíduo. Falamos aqui de mulheres que são esposas, mães, definidas como tal, quase como que perdendo suas identidades, que não se sustentam pois estão atreladas à lógica patriarcal do trabalho invisível e não remunerado e, portanto, não podem ser donas de suas próprias vidas. Assim, a alternativa romântica encontrada no cinema, nesses casos, é uma mudança a partir de um novo romance, com outro homem. Não existe essa intenção de gerar todo esse pensamento, é claro, no filme de Douglas Sirk, mas no meu lugar no mundo e no tempo essas questões estão atreladas ao meu olhar.


Dessa mesma forma, quando a história é transportada para as mãos de Haynes, os inimigos são muito mais latentes e as críticas não são apenas intencionais, como o maior objetivo do longa. O diretor não altera o tempo, mantém sua história nos anos 50, mas acrescenta o debate sobre raça e sexualidade em foco. A esposa, Cathy, é casada aqui e não viúva, a estrutura da sociedade que os cerca é muito similar, porém com um tom mais soturno, já que a estética aqui conversa com o Noir e se distancia das cores brilhantes e o clima otimista do Technicolor alegre de Sirk. Essa estética também acompanha os debates propostos, Haynes pretende claramente apresentar essa família de aparências para depois desmascará-la, e para isso, tudo é mais deprimente, com os ares de uma vida de mentira.


Podemos pensar que Sirk foi otimista demais ao dizer que uma mulher poderia realmente enfrentar os julgamentos da sociedade para viver um amor, mas ainda sim, tudo estava um tanto a seu favor. Os filhos mais velhos, com seus destinos feitos, o marido já havia morrido e o novo marido só não era rico, mas no mundo dele se via toda a felicidade que Cary poderia encontrar. Cathy não teria a mesma sorte, ainda que largasse tudo para seguir Raymond, teriam o mundo contra eles, como é bem mostrado na vizinhança do homem que também não aceita seu relacionamento com uma mulher branca. Para ela não restou nem a possibilidade de mudar de vida seguindo outro homem, não há lugar de dúvida ou decisão em Longe do Paraíso, mas o que vemos nesses exemplos, nos outros citados nesse texto e em tantos outros que existem no cinema, é que a escolha de uma mulher é (ou era) quase sempre limitada a um parceiro, como se não houvesse um lugar de felicidade para uma mulher que decide viver sua vida sozinha, seja ela uma dona de casa dos anos 50 que realmente é prisioneira de seu tempo, ou uma mulher dos anos 90 que teve boa parte de sua vida dedicada à família e não sabe mais como viver de outra forma. São um pouco retratos de realidades e um pouco fantasias para as espectadoras sonharem com outras vidas, coincidentemente ou não, dirigidas por homens.


A questão é muito mais séria na obra de Haynes, colocando o novo interesse romântico da mulher como um homem negro, um obstáculo concreto e real para a época. Acrescento aqui que ainda que queira debater o racismo, acredito que o diretor falhe ao colocar Viola Davis como uma empregada doméstica que pouco diz, é quase um objeto em cena. Do outro lado, o marido vive uma vida dupla por ser gay mas não conseguir encontrar sua verdadeira felicidade pelo preconceito de seu tempo, buscando inclusive uma espécie de “cura” médica. A ironia é que na pilha de opressões que o filme carrega, a do marido branco, rico e homessexual parece ser a mais fácil de driblar, já que ele opta por largar tudo e viver seu romance, enquanto o jardineiro negro perde todas as oportunidades e é obrigado a se mudar e a esposa fica sozinha com os filhos, sem poder optar por um nem outro. Justamente por escolher todas essas críticas como foco de seu filme, Haynes faz algo muito mais triste e pesado que Sirk, que faz um melodrama alegre onde o amor pode vencer no fim.


Podemos pensar que Sirk foi otimista demais ao dizer que uma mulher poderia realmente enfrentar os julgamentos da sociedade para viver um amor, mas ainda sim, tudo estava um tanto a seu favor. Os filhos mais velhos, com seus destinos feitos, o marido já havia morrido e o novo marido só não era rico, mas no mundo dele se via toda a felicidade que Cary poderia encontrar. Cathy não teria a mesma sorte, ainda que largasse tudo para seguir Raymond, teriam o mundo contra eles, como é bem mostrado na vizinhança do homem que também não aceita seu relacionamento com uma mulher branca. Para ela não restou nem a possibilidade de mudar de vida seguindo outro homem, não há lugar de dúvida ou decisão em Longe do Paraíso, mas o que vemos nesses exemplos, nos outros citados nesse texto e em tantos outros que existem no cinema, é que a escolha de uma mulher é (ou era) quase sempre limitada a um parceiro, como se não houvesse um lugar de felicidade para uma mulher que decide viver sua vida sozinha, seja ela uma dona de casa dos anos 50 que realmente é prisioneira de seu tempo, ou uma mulher dos anos 90 que teve boa parte de sua vida dedicada à família e não sabe mais como viver de outra forma. São um pouco retratos de realidades e um pouco fantasias para as espectadoras sonharem com outras vidas, coincidentemente ou não, dirigidas por homens.



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