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Adeus, Dragon Inn (2003) | As muitas mortes do cinema e os fantasmas que ficam

Tsai Ming-liang explora a sensibilidade e o poder das imagens para se despedir melancolicamente de uma era do cinema, em um luto que persiste até hoje



Uma sala não tão vazia, tampouco cheia, em um cinema de rua de São Paulo, exibiu nos últimos dois domingos o filme de 2003 de Tsai Ming-liang. Se chovesse seria o mais poético que conseguiríamos chegar. Pelos silêncios que preenchem os 82 minutos do longa era impossível não notar a presença espaçada e as reações silenciosas do público, justamente a intenção do diretor ao retratar a experiência coletiva que é (e já foi ainda mais no passado) o cinema. Em momentos ele nos coloca como espectadores também dentro de seu filme, nas muitas poltronas vazias do majestoso e histórico cinema de Taipei, e em muitos outros como observadores das almas que vagam por ali. A transformação do consumo, do espectador e da nossa relação com o espaço e com a arte é transmitida quase como um desabafo pessoal e é curioso refletir o quanto Adeus, Dragon Inn fala de questões que ainda são atuais, mesmo que 20 anos depois. Em um mundo que molda nosso consumo cada vez mais para uma lógica acelerada e de streamings, os cinemas de rua estão praticamente extintos, com poucos resistentes que mal se sustentam, como o pequeno anexo do Itaú da Augusta, também em São Paulo, que apesar de levar nome de banco já perdeu algumas brigas contra as grandes construtoras que derrubam todos os dias um pouco de cidade para levantar apartamentos minúsculos e caríssimos. O luto de Tsai Ming-liang pelo fim de uma era do cinema como espaço de troca entre espectadores perdura no mundo enquanto alguns resistem para sobreviver nadando contra a maré.


O grande ponto dessa obra ao retratar a incapacidade das pessoas de se conectarem umas com as outras e com a arte é também uma pauta extremamente atual. Os corpos que vagam no cinema quase vazio em seu último dia mostram uma ressignificação daquele espaço, poucos amantes da arte e trabalhadores - afinal é sempre importante lembrar que cinema é trabalho em muitas vertentes - todos misturados nessa despedida. O filme exibido, e também assistido por um de seus atores, é quase insignificante, já que as poucas pessoas na plateia não conseguem se conectar com a grande tela, seja pelas distrações das pessoas que partilham a sala ou por uma busca de contato com outros corpos, também fracassada. Da mesma forma que não conseguem sentar e assistir ao filme por completo, não são capazes de se tocarem, conversarem, partilharem algo. Pouco é dito entre eles, não existe uma verdadeira comunicação, mas para nós, Tsai Ming-liang consegue dizer tudo com o poder das imagens. Em algum momento nos muitos minutos que a sala vazia nos encara, preenchendo grandiosamente a tela do cinema, uma mulher ao meu lado demonstrava uma incompreensão num gesto de mãos, como quem se perguntava se nada mais aconteceria na cena. Não poderia ser mais significativo de um espectador incapaz de se conectar com a arte, em uma imagem que diz tanto, que preenche de tristeza pelo vazio, que demonstra a decadência de um espaço que já foi lugar para milhares de pessoas assistirem juntas a grandes obras, que é mais do que uma despedida, também uma homenagem melancólica de um tempo que se foi, e é uma infelicidade não conseguir sentir e se relacionar com esse poder.



Pensando um cinema que se torna cada vez mais verborrágico, no qual o tempo e o ritmo são cada vez mais questionados e as temáticas são cada vez mais importantes, não há lugar para uma sala de cinema com mais de mil poltronas, mas há cada vez mais espaço para uma atenção disputada com celulares, pausas e artifícios que quebram a experiência. A virada do milênio foi um ponto de mudança para muitas coisas, e Adeus, Dragon Inn é um retrato sensível de como o cinema de Taiwan sofreu impactos e perdas, em que é quase palpável a tristeza de seu autor, principalmente quando vemos figuras reais de grandes filmes lamentando a falta de público nos cinemas e as lágrimas emocionadas de uma das únicas pessoas que realmente sentiu algo com o que estava sendo exibido. A insensibilidade que nos afasta não afeta apenas a relação com os filmes, mas a conexão com o mundo como um todo. Cada vez nos sentimos mais sozinhos e as experiências se tornam mais individuais. A sala de cinema retratada no longa não parece realmente vazia, pois está cheia de fantasmas e, de certa forma, é quase sempre assim ao fim de uma sessão de qualquer filme que não seja um blockbuster.


Uma das maiores felicidades de ser amante do cinema é poder sentir tudo de mais intenso que um ótimo filme carrega, experiência que depende totalmente da nossa relação única com cada obra, mas que pode ser magicamente partilhada entre muitos. A tristeza que fica ao fim de Adeus, Dragon Inn é resultado da capacidade do diretor em traduzir sensações e experiências perfeitamente por meio das imagens, está tudo lá para sentirmos, mas, é também uma felicidade que fica, de presenciar um trabalho magnífico. Apesar do pessimismo notável da obra, ainda fico com a esperança de um resgate à sensibilidade que nos conecta com a arte sem a necessidade de interpretações e de mais liberdade para conhecer e apreciar todos os tipos de filmes feitos, não somente os que mais interessam aos lucros da indústria. O cinema morreu muitas vezes, mas segue caminhando, um tanto manco talvez, atravessando tempestades torrenciais, mas ainda imortal em cada um que respira essa arte.


Nota da crítica:

5/5




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