Silvino Santos documenta cada etapa do aproveitamento das riquezas naturais produzidas ao longo do rio Amazonas, criando um registro histórico para o futuro
Como escrever sobre um filme de 1918? O desafio é acima de tudo, de compreender meu lugar, assistindo a uma obra que se perdeu e hoje só pode ser vista com nossa bagagem do presente. É sempre importante pensarmos os filmes nos tempos em que foram feitos, mas a complexidade é muito maior quando falamos de uma obra de mais de cem anos atrás, sem som, que já passou pelas alterações do tempo. A restauração já conta com intertítulos em tcheco e as exibições tanto no Festival de Cinema Mudo de Pordenone, na Itália, quanto no Brasil, na Cinemateca, contaram com trilhas sonoras novas, compostas especialmente para o filme agora, em 2023. É inevitável, então, pensá-lo fora de seu tempo, como se seus negativos tivessem sido transportados do passado direto para o futuro, para os críticos, cinéfilos e espectadores de hoje absorverem sua mensagem com o que sabem do mundo atual. A história bastante complicada desse média-metragem se dá quando um colega de equipe de Silvino Santos mudou o título do filme, se passou por seu diretor e negociou a venda internacional, então o material se perdeu na Europa e foi encontrado somente no começo deste ano no Národní Filmový Archiv (Arquivo Nacional de Cinema da República Tcheca), catalogado como uma produção norte-americana de 1925. Agora, é curioso assistir a um filme brasileiro, documentando paisagens e pessoas daqui, lendo textos em outro idioma, dependendo das legendas para o compreender, mas é também bastante emocionante de se ver e entender que um registro como esse voltou para casa, não somente como uma peça importante do nosso cinema, mas também como parte de toda história do país.
Amazonas, o Maior Rio do Mundo é sobretudo um documentário sobre as riquezas naturais produzidas ao longo do rio, em que Silvino navega e visita diversas regiões observando seus produtos, fauna, flora e pessoas. Assim como a produção da borracha, que é filmada em cada etapa, da extração do látex da seringueira até o produto final que é comercializado, o documentarista se dedica a mostrar cada produto ou alimento que vem da natureza e é manipulado pelo homem, seja para um consumo menor e local ou em grande escala, levado a fábricas e para exportação. Enquanto as imagens mostram de forma dinâmica a pesca, a colheita das castanhas, o aproveitamento de cada parte do peixe, do artesanato e pintura, da produção do algodão e de tantas outras coisas, os textos explicam a utilidade de cada coisa e seus processos. É didático, mas também importante historicamente, e assistindo hoje tudo parece quase um prenúncio da exploração desenfreada de recursos naturais que desencadeou tantos problemas. Quase uma ironia ver tanta madeira empilhada no filme enquanto passamos por uma crise climática terrível nesse mês de novembro no Brasil, pior ainda se lembrarmos o descaso político de poucos anos atrás tanto com a floresta amazônica quanto com a população do Amazonas. Mas, faço a reflexão de que esse tom de denúncia provavelmente nunca foi a intenção de Silvino, que imagino só estar documentando realmente as regiões que passou como registro, realmente, para mostrar ao mundo tudo que o Amazonas produzia, como funcionavam os processos, como as pessoas transformavam mandioca em tapioca, como os povos indígenas aproveitavam as coisas, dançavam e usavam seus acessórios, ou como Manaus e Belém costumavam ser. É um olhar curioso que felizmente existiu para transportar para o futuro as imagens de algo que já mudou há tanto tempo, e os fantasmas que ficaram nos negativos.
Existe também uma relação entre presa e predador no documentário, tanto ao mostrar os próprios animais com predadores, a onça ou os jacarés, como ao registrar o ser humano nessa posição, pescando, removendo a pele, matando, criando o gado, utilizando os animais em carroças, domando cavalos e afins. O olhar de crueldade muitas vezes pode ser do meu eu presente e talvez Silvino apenas registrasse o ciclo natural das coisas, mas é interessante como entre os próprios humanos há esse contraste, de pessoas bem vestidas, limpas com roupas bem brancas e trabalhadores sujos, no calor, sem sapatos ou sem camisa, fazendo o trabalho pesado. Em muitos momentos os cortes são rápidos e as cenas mudam quando há algo mais violento, digamos, com os animais, primeiro porque não há tempo a perder, Silvino tem muito o que mostrar, segundo porque seu documentário não carrega esse caráter, a observação de cada etapa se dá com atenção, mas quase sempre evita algo mais gráfico, cortando para a pele ou a gordura sendo removida, tornando aquilo novamente um produto, não um ser vivo. O mesmo não acontece com a onça e sua presa, que o documentarista filma por bastante tempo, como mais uma ação da natureza local. Mas, novamente, essa é minha visão do hoje, com todas as influências e bagagens que carrego.
A trilha sonora torna um tanto mais complexa essa relação com a obra, já que na exibição na Cinemateca contamos com ela composta no presente por Luiz Henrique Xavier, o que inevitavelmente já carrega uma interpretação do compositor. A música coloca muitas vezes uma tensão e obscuridade para as cenas que mostram a exploração da madeira, por exemplo, ou um certo misticismo para as florestas. É uma pena pensar que nunca ouviremos o som verdadeiro dos pássaros ali filmados, e até podemos tentar nos desligar da atmosfera que a trilha carrega, mas o importante é apreciar o filme da melhor forma possível. É comum ao estudar cinema assistir a filmes curtos e mudos no youtube com uma trilha que nem sabemos ao certo quando e nem por quem foi feita, podemos até silenciar o som na tentativa de aproximar a experiência da fidelidade, mas a verdade é que isso é impossível, nada do começo de 1900 pode ser visto hoje como seria visto na época e assistir a um filme mudo de uma hora pode ser um grande desafio de atenção, ainda mais para toda ansiedade que carregamos no presente, então a trilha sonora por mais que possa nos influenciar, é muito bem-vinda.
Acima de qualquer coisa, é emocionante assistir no cinema uma obra como essa, compreendendo seu papel histórico e a importância dela ter sido finalmente encontrada. A grande viagem de Silvino e seus registros atentos trazem uma parte do Brasil já transformada, e fiquei me perguntando se as pedras com inscrições ainda estão lá, já que certamente Manaus não é mais a mesma daquelas imagens, mas segue eternizada na restauração que agora tem mais chances de viver outros séculos e contar para o futuro, se ele existir, como era feita a borracha ou até mostrar alguns animais que talvez nem existam mais daqui um tempo.
Nota da crítica:
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