Ari Aster se perde nos muitos caminhos da sua odisseia de ansiedade e culpa, abandonando o horror frontal para abraçar o terror na psicanálise
Se a expectativa é a mãe da decepção, uma das melhores formas de se blindar ao assistir a novos filmes é não esperar muito deles, deixar que eles se provem. O problema é quando é a própria obra que promete muito, como é o caso de Beau Tem Medo, no qual a primeira hora de filme é muito mais do que suficiente para abraçar a ideia e entrar completamente no longa, o que infelizmente é seguido por uma decepção completa. Se Ari Aster mostra toda sua capacidade de direção e controle da encenação nesse primeiro ato, o que vem depois é espantoso por mostrar o oposto, um descontrole que tenta ser muitas coisas que não se encaixam, removendo completamente o espectador do filme, totalmente destoante com o que já vimos em outros trabalhos do diretor. Talvez o “horror elevado” tenha finalmente conseguido atingir e estragar a obra de Aster, seguindo os moldes da A24 de transformar o gênero em algo metafórico e simbólico em prol de uma elevação do psicológico como algo mais profundo e melhor. É uma tendência do cinema atual, de espectadores que buscam significado em tudo nas obras e se sentem inteligentes ao “desvendarem” filmes, priorizando o drama acima de qualquer gênero. Mas, quando pensamos em Hereditário (2018) e Midsommar (2019), ainda que o diretor trabalhe símbolos e metáforas, estes se justificam bem nos universos propostos, sem abandonar o horror frontal, o sangue, a violência e afins. São diretos e são o que são, ainda que as pessoas possam buscar grandes significados além deles, são trabalhos que não buscam esse diálogo. Beau Tem Medo até começa dessa forma, mas se torna outras tantas coisas que parece que Aster tentou fazer todos os filmes que gostaria antes de morrer em um só.
Falando especificamente de tudo que há de bom no longa, a primeira hora de duração é uma das melhores expressões sobre ansiedade que vi no cinema. A atmosfera caótica do mundo que cerca Beau (Joaquin Phoenix) traduz bem o motivo do terror ser um gênero do corpo, é quase impossível não suar e sofrer corporalmente junto com o personagem enquanto ele tenta se deslocar em uma cidade totalmente perigosa e cheia de ameaças. É totalmente relacionável já que é difícil imaginar quem a essa altura do mundo não sabe o que é se sentir ansioso. O medo de Beau é retratado perfeitamente em tela, com todos os elementos trabalhando perfeitamente para isso. Todas as situações são obras de uma mente ansiosa e tudo de pior que pode acontecer, acontece, todas as ameaças são concretas e acontecem ao mesmo tempo. A chave roubada, a necessidade de apenas atravessar uma rua, o horror de chegar em casa e torcer para entrar no prédio antes de algo ruim ocorrer, enquanto o homem é praticamente uma criança indefesa sendo afetada por tudo isso. Até a introdução dos traumas do personagem soa melhor nessa primeira parte, a relação de culpa com a mãe que serve como gatilho de toda essa ansiedade é trabalhada apenas com ligações onde a mulher não aparece e apenas ouvimos sua voz, é suficiente para dar todo o peso que precisamos para adentrar essa viagem. Dessa forma, esse ato é quase um filme à parte, que se assemelha muito mais com a trajetória de Aster do que o que vem depois, é direto, e ainda que trabalhe elementos próprios do psicológico do personagem, o faz sem austeridade ou uma busca por significados maiores escondidos, tudo está ali, é dado, basta embarcar no caos e sofrer junto. Mas o que vem depois parece não se encaixar.
Há algo similar com o curta A Coisa Estranha Sobre os Johnsons (2011), quando Beau vai para a bizarra casa da família que o abriga a seguir. Na verdade, existem pistas de seus trabalhos ao longo de todo o filme, cabeças esmagadas, grupos ou cultos secretos, ideias de conspiração e afins, estão presentes em diversos momentos, mas a dinâmica dessa casa conversa mais com o curta de 2011 justamente por se pautar no estranhamento causado pelo comportamento da família. Nesse ponto o filme começa a ser uma odisseia de Beau em busca da mãe, ao contrário do começo que era quase uma fuga, uma representação do medo desse encontro. A relação do homem e da mulher com Beau é totalmente paternalista e o personagem se torna cada vez mais infantilizado, o que é uma pena para a atuação de Joaquin Phoenix, já que o ator só serve para reagir bobamente a tudo que o afeta. Mesmo que se encaixe no todo, a atuação vai se enfraquecendo e se tornando esquecível como um objeto de cena. É nessa espécie de segundo ato que a obra também começa a escrachar sua relação com O Show de Truman (Peter Weir, 1998), pelas gravações e pelas pistas de outros personagens que querem “avisar” Beau sobre algo. Os traumas maternos também são mais latentes quando o homem começa a se relacionar com outras mulheres, começando por Grace (Amy Ryan) que o infantiliza mas também se preocupa com Beau, para no fim também o colocar no lugar da culpa.
É na próxima parada dessa “guilt trip” proposta por Ari Aster que ele abraça completamente a metáfora surrealista para exercitar um drama psicológico indo na contramão do horror frontal que costumava propor e que parecia ser o caminho do primeiro ato. O sentimento é que o começo do longa nos puxa totalmente para dentro para depois nos expulsar quando Phoenix adentra o espetáculo teatral na floresta, em uma digressão que parece durar uma eternidade e não acrescentar em nada. Parece que o tempo todo a obra nos convida a decifrá-la, chegando ao ponto de praticamente gritar em nossa cara se queremos saber a verdade, quase como atestando que existe muito a ser entendido que não entendemos, mas ao mesmo tempo colocando diálogos e momentos que abandonam por alguns instantes o simbolismo numa confusão de propostas. A verdade é que não há nada para ser decifrado que uma mente brilhante precise se atentar ou ter uma sensibilidade ímpar para traduzir, mas a pretensão disso é gritante.
A referência ao filme de Peter Weir chega ao cúmulo de emular seu famoso e marcante final, para chegar no mesmo ponto que Ari Aster destaca quinhentas vezes sobre a culpa que a mãe provoca em Beau e como isso o castrou durante toda sua vida, fato escrito com todas as letras para nós no caderno do falso terapeuta nos primeiros minutos de duração. É um tanto cansativo observar a mesma ideia várias vezes de formas diferentes, assim como é um tanto frustrante ver um potencial tão forte numa obra para depois encarar que o restante dela é apenas uma repetição de um homem infantil e fraco sendo constantemente esterilizado pela poderosa mãe de formas a parecer algo muito mais profundo e significativo. É também trágico como a revelação do aprisionamento do pai de Beau se assemelha a outra obra igualmente pretensiosa da A24, Men (Alex Garland, 2022) que, da mesma forma, se preocupa com metáforas e um diálogo para decifrar símbolos quando na verdade não tem nada demais a dizer.
No fim, é isso, Beau Tem Medo até parecia ter muito a mostrar e dizer, mas se perde num caminho que fica batendo num mesmo ponto, tentando soar mais inteligente do que realmente é, com um belo média-metragem no começo. Ele tem medo, mas eu tenho muito mais de ver o que essas tendências estão fazendo com o gênero do horror.
Filme assistido a convite da Diamond Films
Beau Tem Medo chega aos cinemas em 20 de Abril.
Nota da crítica:
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